quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A morte da estratégia



Em vez de uma visão para a América Latina, há pequenos programas, iniciativas e "parcerias"


Resisto há muito tempo ao argumento superficial de que exista uma divisão fundamental na América Latina --esquerda/direita, vegetariano/carnívoro, bitolado/liberal, Estado/mercado, democrático/populista, Pacífico/Atlântico.
Essas correspondências rendem frases curtas de impacto, fáceis de digerir, mas geralmente deixam pouca margem para o claro-escuro, a área cinzenta em que a vida nacional e internacional ocorre de fato.
Sobretudo, a partir de onde estou sentada (literalmente), a apenas uma quadra da Casa Branca e a mais ou menos dois quilômetros do Capitólio, ainda me espanto com a dificuldade de Washington em elevar-se acima desses refrões.
Nas raras ocasiões em que de fato lida com a América Latina, a Casa Branca faz um trabalho muito melhor que o Congresso, reconheço.
Mas, como o Congresso controla as verbas e a confirmação de embaixadores e figuras seniores do governo, ainda enfrentamos uma falência da imaginação e da vontade política em Washington.
Em vez de uma estratégia para a América Latina baseada em interesses, temos grande número de pequenos programas, iniciativas e "parcerias", com pequenos orçamentos administrados por indivíduos de várias agências do Executivo aos quais, de modo geral, falta um quadro estratégico abrangente que venha de cima.
Sim, sim: secretários do gabinete e nosso dinâmico vice-presidente fazem muitas viagens à região, e a crise do momento (hoje em dia, a América Central) ganha atenção porque repercute diretamente sobre a política doméstica --imigração. Mas modo de crise e milhas aéreas não formam uma estratégia.
Não estou falando em uma "estratégia de contenção" ao estilo de George Kennan. O mundo, incluindo a América Latina, é complicado demais para algo tão simples.
Mas o que dizer de diretrizes básicas, assentadas sobre uma avaliação realista de nossa interdependência, nossas linhas de falha e oportunidades que isso encerra?
Na ausência de um quadro estratégico, as mulheres e os homens responsáveis pelas políticas para a região são forçados a agir mais como responsáveis por programas de fundações filantrópicas, vasculhando a região em busca de destinatários aceitáveis dos recursos minguantes de um patrono financeiro repreendedor, arbitrário e politizado.
Existe outro problema, e aqui vou revelar minha idade. Um amigo meu que durante anos trabalhou com política para a América Latina em várias agências do governo observou que faltam aos burocratas políticos de Washington nascidos desde a era Reagan (1981-89) ferramentas básicas de discernimento e análise.
Ui! Ele não estava expressando saudades da Presidência de Reagan, embora o bipartidarismo da época seja inexistente hoje. Creio que o que ele quis dizer é que Washington era uma cidade onde as ideias, e não apenas a ideologia, importavam, mesmo que um pouco.
Hoje a cidade é suscetível ao discurso simplista porque, lamentavelmente, para avançar profissional e politicamente é preciso sucumbir linguisticamente --logo, intelectualmente-- à tirania da tática. Folha, 19.11.2014.
@JuliaSweig
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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O mundo fala, o Brasil se cala


Proliferam, mundo afora, acordos comerciais até entre rivais, enquanto o governo Dilma se omite


Reuniões de cúpula como a do G20, neste próximo fim de semana, servem sobretudo para falar de negócios entre os governantes.
Pena que o Brasil de Dilma Rousseff tenha pouco ou nada a dizer a respeito nos encontros previstos com pesos-pesados como Vladimir Putin, Barack Obama e Xi Jinping.
Pouco porque todos vêm de suculentas conversas em outra cúpula, a da Apec, sigla em inglês para Cooperação Econômica Ásia-Pacífico.
Com Putin, Dilma poderia falar da crise na Ucrânia, mas o Brasil não tem posição a respeito. Não é contra nem a favor da intervenção russa no país vizinho.
Com Xi, pode falar do banco dos Brics, um nada perto do que o líder chinês tratou com seus colegas da Apec e até com seu rival Obama.
Tratou, por exemplo, do relançamento da FTAAP (Área de Livre-Comércio Ásia-Pacífico), conglomerado de 21 países que representam 50% do PIB global e 44% do comércio planetário.
O Brasil, claro, está fora. Não é banhado pelo Pacífico. Mas também não tem acordos com os países banhados pelo Atlântico, exceto o cambaleante Mercosul.
Se a política externa brasileira tem um viés ideológico, no que prefiro não crer, então talvez Dilma possa aprender algo com Xi Jinping.
A China, como se sabe, é o único outro polo ideológico a contrapor-se ao capitalismo liberal americano com seu capitalismo de Estado.
Não obstante, assinou com Obama um acordo para liberalização do comércio de bens de tecnologia, que abrange algo em torno de US$ 1 trilhão em comércio, cerca de 45% do PIB brasileiro.
Será agora levado à Organização Mundial do Comércio, enquanto a Confederação Nacional da Indústria batalha, inutilmente, para que o Brasil entre no acordo, também em discussão na OMC, sobre liberalização do comércio de serviços.
É verdade que está prevista, paralelamente à cúpula do G20, uma reunião dos Brics, mas é puro cumprimento de tabela, como diriam os cronistas esportivos.
Se a China pode se entender com os EUA até em matéria de ambiente --justamente eles, os dois maiores poluidores--, para que vai dar bola para os Brics, que, sem ela, perderiam todo o sentido?
A Índia, também dos Brics, não está parada: vai negociar, à margem do G20, um acordo de livre-comércio com a anfitriã Austrália, que, aliás, também discute mecanismo idêntico com a China.
Até na área de segurança a Índia fala grosso, ao contrário do omisso Brasil: está relançando a chamada "Otan Asiática", aliança militar entre ela, Japão e Austrália.
Para ser justo, é preciso dizer que o Brasil também tenta estabelecer um mecanismo de defesa conjunta no âmbito sul-americano. Mas o avanço é lento, talvez porque a América do Sul tenha o mérito de não ter os problemas de segurança da Ásia e do Oriente Médio, por exemplo.
Numa triste compensação, tem sérios problemas com a criminalidade, que, se não for combatida em conjunto, não será derrotada.
Tudo somado, não há como deixar de citar o bordão do genial José Simão: quem fica parado é poste, cara Dilma. Folha, 13.11.2014.

Cidadão Blair


Tony Blair foi o primeiro-ministro que governou o Reino Unido por mais tempo (1997-2007), vencendo três eleições consecutivas. Foi-lhe atribuído o crédito por salvar a monarquia britânica após a morte da princesa Diana. Blair personificava o "novo trabalhismo", o Partido Trabalhista britânico reinventado, pró-mercado, neoliberal, que deixara para trás o domínio exercido pelos sindicatos. Ele serviu como comparsa de George W. Bush em intervenções no Afeganistão, depois do 11/9, e no Iraque, em 2003.
Foi afortunado ao escolher a hora de partir, substituído por Gordon Brown um ano antes da pior crise financeira desde 1929. O colapso do Lehman Brothers foi seguido por operações de resgate do governo britânico a diversos bancos. A Europa até agora não se recuperou. Desde 2007, porém, Blair segue um caminho bem conhecido.
Ao estabelecer suas empresas, foi assessorado pela KPMG, em Londres, e pelo advogado Robert Barnet, que assessorou Bill Clinton em suas lucrativas operações pós-presidenciais. A configuração das empresas de Blair é perfeitamente legal, e "sociedades limitadas" não são obrigadas a publicar suas contas, sob a lei inglesa. Henry Kissinger estabeleceu a norma para tal tipo de "consultoria", tanto em termos de lucratividade quanto de sigilo do cliente.
O JP Morgan pagou US$ 10 milhões a Blair desde 2008. Ele também assessora a seguradora suíça Zurich, o governo de Abu Dhabi e o presidente Nursultan Nazarbayev, do Cazaquistão. Desde 2012, a Tony Blair Associates também assessora Geraldo Alckmin na "modernização" dos serviços públicos de São Paulo, como parte do projeto "São Paulo 2030".
O "Sunday Times" revelou nesta semana o que definiu como "o acordo secreto de Blair com os sauditas", que envolvia pagamentos para permitir acesso aos seus contatos. A PetroSaudi, petroleira que tem entre seus fundadores o príncipe Turki bin Abdullah Al Saud, pagava 41 mil libras/mês e uma comissão de 2% sobre os projetos que Blair ajudava a intermediar. A PetroSaudi tem projetos em Gana, Indonésia, Venezuela, Tunísia e Malásia.
Blair certamente prosperou. Tem uma casa na qual John Adams viveu como primeiro embaixador dos EUA em Londres, uma mansão que foi do ator sir John Gielgud.
Blair menciona seu papel como enviado (não remunerado) ao Oriente Médio do "quarteto" formado pela ONU, EUA, União Europeia e Rússia, bem como seu trabalho filantrópico na Faith Foundation e na África. "O objetivo não é ganhar dinheiro, mas fazer a diferença", disse a fiéis do novo trabalhismo no 20º aniversário de sua eleição como líder do partido.
Talvez. Deveria recordar Jimmy Carter, cujas atividades pós-presidenciais sem dúvida tornaram o mundo um lugar melhor, sem que isso lhe valesse muito dinheiro no processo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

MATIAS SPEKTOR A Casa Branca de Dilma


Em energia e mudança do clima, poucos emergentes têm mais a oferecer aos americanos do que o Brasil
O governo americano soltou nota sobre a reeleição de Dilma menos de 24h depois do pleito.
No dia seguinte, houve telefonema do presidente Barack Obama e, uma semana depois, de Joe Biden, o responsável pelo Brasil em Washington.
Ambos disseram à presidente querer remarcar logo a data da visita de Estado suspensa. O momento da proposta, respondeu a presidente Dilma ao telefone, é "extremamente oportuno".
Quando ocorrer, a visita ajudará a tirar a relação bilateral do buraco onde se encontra desde o escândalo da espionagem.
O trabalho diplomático será árduo porque os dois países ficaram sem o principal mecanismo capaz de servir como âncora e alavanca da relação nos próximos anos: o contrato bilionário para os jatos da Boeing que, na concepção original, facilitaria o engajamento muito além da mera cooperação militar.
Além disso, vigora hoje um ceticismo profundo no establishment americano a respeito do Brasil.
Não se trata apenas do mal-estar causado pela chamada "nova matriz econômica".
Na percepção norte-americana, em temas candentes como Estado Islâmico, Síria, Líbia, Irã, Rússia e comércio internacional, a atitude brasileira é imprevisível ou obstrucionista.
Por que, então, a insistência na visita de Estado?
Um fator, claro, é dinheiro. O comércio entre os dois países mais que dobrou em 12 anos e os fluxos de investimento são bárbaros, mas há espaço para muito mais.
Além disso, ninguém em Wall Street teme um calote brasileiro.
Outro fator é político. Obama aproxima-se do fim do mandato com uma economia fortalecida, mas com uma base política esfacelada.
Assim, está obcecado pelo legado que deixará nos livros de História. Em pelo menos duas instâncias --energia e mudança do clima--, poucos países emergentes têm mais a oferecer que o Brasil.
Claro, há entraves enormes para a cooperação. A promessa original do etanol, por exemplo, afundou diante do pré-sal.
A promessa do engajamento em tecnologia esbarra até hoje em camadas de burocracia. O custo de tentar, porém, é baixo.
Um fator adicional é a América do Sul. Ali, Brasil e Estados Unidos têm posições diferentes, mas não são adversários.
Pelo contrário, Washington aprendeu que não vale a pena se chocar de frente com Brasília nesses temas, sendo melhor tirar vantagem da capacidade brasileira de ter relações positivas com toda a vizinhança (apesar das divisões que racham a região e das tensões existentes entre o próprio Brasil e seus vizinhos).
Na perspectiva americana, isso importa porque Dilma poderá ter papel positivo nos dois testes regionais de 2015 --o fim do ciclo kirchnerista na Argentina e as eleições parlamentares do chavismo na Venezuela, áreas onde a influência americana é ínfima ou negativa.
A ida de Dilma à Casa Branca repetirá o padrão bilateral dos últimos anos --discórdia temperada por boa dose de acomodação. Podia ser bem pior. Folha, 12.11.2014

É preciso rever a política externa


Chegou a hora de diminuir a carga ideológica da política externa brasileira para darmos alguns passos em direção aos Estados Unidos


O Brasil tem dois ministérios para lidar diretamente com os assuntos relacionados ao comércio exterior. O Ministério das Relações Exteriores e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio poderiam obedecer à máxima que diz que "duas cabeças pensam melhor que uma".
Essa policefalia, no entanto, não evitou que o país acumulasse deficit comercial já no patamar de quase US$ 2 bilhões.
Na realidade, a nossa política internacional é uma serpente com muitas cabeças reunida na Camex (Câmara de Comércio Exterior). A Camex tem como finalidade dar coerência às nossas estratégias comerciais envolvendo diferentes setores. É a responsável pelos desequilíbrios no balanço entre o que compramos e o que vendemos ao mundo.
Tais desequilíbrios são resultado do processo precoce de desindustrialização nacional, que, por sua vez, também é bastante agravado por uma política externa comercial equivocada. Esse círculo vicioso no qual o país se meteu desde que optou por um alinhamento com a potência industrial chinesa a partir de 2008 é a causa maior do baixo crescimento do Brasil.
Com o fim das eleições, o governo continuará o mesmo, mas não necessariamente será mantida a política que nos enfraqueceu no cenário global. A julgar pelos problemas de crescimento da nossa economia, são possíveis ainda as mudanças no sentido de flexibilizar o Mercosul para nos permitir fazer negociações comerciais em separado e rever a aproximação intempestiva com Pequim que marcou a criação dos Brics.
No âmbito do G20, o Brasil caminhou muito até agora ao lado dos grandes emergentes asiáticos. A tradução disso em termos de crescimento para nós não é boa. Não vivemos as crises das nações desenvolvidas, mas também não experimentamos a expansão do capitalismo dos emergentes. Ficamos da média para baixo, até mesmo na América Latina.
As análises de câmbio foram ineficazes, pois o dólar subiu R$ 1 nos últimos quatro anos, justamente o período de maior queda das exportações. Até mesmo o idealizador dos Brics, Jim O'Neill, reconhece que o Brasil ficou chinês demais e que vender commodities é insuficiente.
Com o declínio da indústria, temos menos a oferecer ao mundo. Atuamos muito para eleger um brasileiro na OMC (Organização Mundial do Comércio) e o próprio presidente da organização, Roberto Azevêdo, faz hoje um pedido desesperado para salvar a instituição e a política externa que o colocou lá.
O problema maior é que o deficit comercial, a desindustrialização e o baixo crescimento já começam a atingir o emprego dos brasileiros. Ninguém sabe até quando a nossa economia aguenta manter os atuais níveis sensíveis em que se encontra.
Talvez mais alguns meses se nada for feito ou se não houver nenhuma outra guinada fantástica de globalização financeira no mundo e valorização das commodities que nos jogue para cima.
Não convém brincar com a sorte de milhões de brasileiros. Chegou o momento de diminuir a carga ideológica da política externa para darmos alguns passos em direção aos Estados Unidos, acabando de vez com os estranhamentos que pautaram nossas relações internacionais nos últimos anos.
Ao contrário das teses apocalípticas em torno do fim da era ocidental para esta década, os Estados Unidos estão crescendo, voltaram a ser nossos maiores compradores e podemos encontrar com eles combinações e parcerias mais favoráveis à nossa indústria exportadora.
Sem perder o foco, devemos buscar o reequilíbrio no nosso comércio e salvar o futuro dos nossos empregos. Governo novo, ideias novas.