quarta-feira, 19 de março de 2014

Fortaleza: O que ocorre na Ucrânia nos afeta de forma direta; há urgência por métodos que garantam a estabilidade

MATIAS SPEKTOR
O jogo de Putin na Ucrânia cria uma oportunidade para a doutrina brasileira de política externa. Explico.
Um dos pilares de nosso pensamento diplomático é a tese segundo a qual a concentração de poder nas mãos dos Estados Unidos é péssima, pois torna o sistema internacional instável, injusto e empobrecido.
Basta lembrar de George W. Bush invadindo o Iraque sem porquê. Na concepção brasileira, o mundo seria mais estável, justo e afluente se o poder fosse mais bem distribuído entre as nações. No entanto, como esse modelo poderia descambar para uma competição desenfreada, a diplomacia brasileira especifica: queremos uma "multipolaridade benigna".
O esquema seria "benigno" por ter amparo em organismos multilaterais como a ONU e por promover a justiça global com políticas redistributivas favoráveis aos países mais fracos e pobres.Até aí, tudo bem.
Só que o argumento oficial nunca diz nada a respeito do mecanismo central de um sistema multipolar estável: o chamado "concerto" entre as grandes potências.
Num mundo de muitos centros de poder, a concertação e a acomodação entre os atores mais relevantes é o motor da coexistência pacífica.
Para emplacar sua visão de ordem global, o Brasil teria de dizer algo a respeito da natureza desse concerto.
O silêncio vigente até agora é natural. Durante os longos anos da Guerra Fria, nossa diplomacia dedicou-se a denunciar o concerto entre as superpotências como conluio para congelar o poder mundial e enquistar o Brasil na periferia.
Agora, porém, nossa posição no sistema mudou. Pela primeira vez, o Brasil está no clube de países que importam. Não por ser belo nem forte, mas porque em temas como finanças, comércio, mudança do clima, livre navegação, cibersegurança e inclusão social não há solução durável sem ele na mesa onde terá lugar a repactuação.
Por isso, o que ocorre hoje na Ucrânia nos afeta de forma direta: de repente, há urgência por princípios e métodos de concertação que possam garantir a estabilidade no século 21.
Ainda falta muito para que um novo ordenamento ganhe contornos definidos. Mas a negociação já começou, e é hora de transformar a "multipolaridade benigna" em conceito operativo de nossa politica externa.
Afinal, forças poderosas já empurram na direção oposta. No mês que vem, por exemplo, a influente revista "Foreign Affairs" repetirá a ideia fácil, porém falsa, de que não há acomodação possível, pois o mundo estaria dividido de forma irreconciliável entre países autoritários (Rússia, Irã e China) e uma suposta "liga das democracias".
O Brasil tem algo valioso a dizer sobre o tema, que cada vez mais afetará seus interesses fundamentais. Eis aí um assunto que animaria de verdade a cúpula dos Brics daqui a quatro meses, na cidade de Fortaleza. Para entender como um concerto multipolar começa, é imperdível a leitura de "Ritos de Paz", de Adam Zamoyski (US$ 8,80 no Kindle).
Folha, 19.03.2014
www.abraao.com

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quarta-feira, 12 de março de 2014

A Unasul e a soberania: Reunião de hoje dirá até que ponto grupo está disposto a discutir questões vistas como internas dos países

JULIA SWEIG
Embora alguns dos protestos do ano passado no Brasil tenham sido violentos, não levaram instituições regionais ou internacionais nem grupos de chanceleres a exortar Brasília a fazer essa ou outra reforma política. Sim, os mercados fizeram as perguntas de praxe, e a incerteza em torno da Copa do Mundo se aguçou.
Diferentemente da Venezuela, porém, as credenciais democráticas essenciais do Brasil não chegaram a ser questionadas, embora a responsabilidade do governo para com os brasileiros continue a estar no centro das atenções neste ano eleitoral.
Os protestos na Venezuela e a resposta do governo são vulneráveis a chamados por fiscalização internacional precisamente porque a polarização há anos faz parte da estratégia chavista e da oposição. Sob essas circunstâncias, a participação de atores externos na resolução de conflitos não pode ser equacionada com intervenção pura e simples.
A reunião da Unasul que acontece hoje no Chile, país onde protestos e democracia parecem conviver de modo produtivo, nos dirá muito sobre até onde os sul-americanos estão ou não dispostos a conversar entre eles sobre questões tradicionalmente vistas como sendo soberanas.
Já vimos na semana passada, na OEA, um virtual consenso de que o governo de Nicolás Maduro merece o benefício da dúvida. Logo, é possível que Santiago não produza nenhuma surpresa.
Mas esperamos que a Unasul também tenha algo a dizer sobre o uso legítimo e ilegítimo da força por governos contra suas populações.
Joe Biden já terá deixado o Chile no momento em que os chanceleres da região se reunirem. Sua ausência, assim como a ausência de Washington da maior parte da diplomacia regional sul-americana, deve assinalar que há espaço para uma discussão que não seja anuviada pela sugestão de que os enfrentamentos na Venezuela sejam complô americano. A morte de uma chilena em Caracas pode ajudar a afastar tais distrações.
É claro que a história faz com que seja muito fácil fazer esse tipo de suposição na América Latina.
O contexto global também pesa: um olhar rápido pelas páginas de opinião editorial da imprensa latino-americana sugere que seja tentador (embora cause confusão e não seja útil) procurar na estratégia de Putin na Crimeia e na atuação americana e europeia em Kiev referências narrativas de hegemonia e resistência (ou das duas coisas, dependendo da perspectiva do leitor).
As diferenças entre a Venezuela e a Ucrânia são muitas, mas a mais notável é precisamente quão pouca influência os atores internacionais parecem ter em Caracas.
Saúdo a ascensão de instituições regionais não mais dominadas por Washington, especialmente se suas cúpulas oferecerem mais que o blá-blá-blá de sempre. Ser vistos como a causa ou a cura de todos os males da região não beneficia os EUA.
Entendo que nem o Brasil nem nenhum outro país da região tenha interesse em assumir esses ônus. Mas detesto imaginar mais um editorial do "Washington Post" lamentando o fracasso da liderança que emana de qualquer capital, quer seja Washington, quer seja Brasília.
Folha, 12.03.2013