quarta-feira, 16 de abril de 2014

MATIAS SPEKTOR: Retaguarda exposta


No Brasil, as autoridades enfrentam dificuldades cotidianas para negociar com o governo argentino
"Quero ajudar Cristina como for possível", disse Dilma a um de seus embaixadores em 2011, logo após assumir o governo. A Argentina era o principal aliado regional do Brasil, e Cristina representava uma alternativa de esquerda inspirada pelo lulismo. Ciente das dificuldades da colega, Dilma estava disposta a entrar em campo.
Na perspectiva do Planalto, o kirchnerismo merecia apoio depois de tanta façanha. Chegando à Casa Rosada em seguida a uma das maiores crises da história argentina, o casal Kirchner fizera a economia crescer e renegociara os termos da dívida externa. Introduzira políticas redistributivas pela primeira vez. E, no processo, montara uma poderosa estrutura de poder.
O relacionamento de Lula com o kirchnerismo nunca fora fácil. Néstor criara problemas, atuando contra a iniciativa brasileira pela reforma do Conselho de Segurança da ONU e pela criação da Unasul.
Dilma conseguiu melhorar o tom da relação, embora fosse impossível reverter a bateria de atritos comerciais, que apenas pioraram.
Em 2011, o kirchnerismo ganhou força adicional, reelegendo Cristina com 54% dos votos. Alguns sonharam com uma reforma constitucional que permitisse a ela pleitear um terceiro mandato.
De lá para cá, no entanto, o cenário mudou.
Derrotada nas eleições parlamentares de 2013, Cristina ficou sem maioria para reformar a Constituição e tentar mais uma reeleição.
O Banco Central perdeu um quarto de suas reservas, a política de nacionalização de empresas espantou investidores estrangeiros e o preço da soja, motor do kirchnerismo, parou de crescer. Semana passada, sindicalistas antes alinhados com o governo patrocinaram uma greve geral que parou o país.
Nesse ambiente, a tensão social cresce. A opinião pública é cada vez mais inclemente com a sensação de insegurança, os apagões e os escândalos de corrupção.
Para alguns, Cristina poderia até mesmo deixar o governo antes das eleições para tentar a sorte como governadora ou senadora e, assim, contar com foro especial para se defender dos processos na Justiça, que virão.
Cristina também está perdendo amigos pelo mundo. Sua agenda com Chile, Uruguai e Paraguai é negativa, e com a Venezuela, de dependência.
No Brasil, as autoridades econômicas e comerciais enfrentam dificuldades cotidianas para fazer negócio com o governo argentino, e a relação entre as presidentes está longe de ser íntima.
Grupos dentro do PSDB advogam abertamente por uma flexibilização do Mercosul, arrancando o aplauso de partes da indústria e até mesmo de gente vinculada ao PT. Nesse cenário, a Argentina perde.
Cristina ainda tem um ano e meio pela frente, e muita coisa pode mudar. Do ponto de vista brasileiro, porém, o cronograma não podia ser pior.
Enquanto os argentinos estiverem atravessando sua transição política mais importante em mais de uma década, com tudo o que isso traz de incerteza, o próximo governo brasileiro, seja de quem for, estará lidando com seu próprio ajuste. Folha, 16.04.2014.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

JULIA SWEIG: Obama e o 'Twitter cubano' (Zunzuneo)

Uma ironia está no fato de o esquema quase disfarçado do Zunzuneo visar clima de transparência em Cuba
"Incendiário". "Tragicomédia." "Burrice". Essas são algumas das reações à notícia de que, entre 2009 e 2012, a Usaid [agência americana de cooperação] financiou firmas de fachada na Costa Rica e na Espanha para promoverem um aplicativo gratuito de mídia social a usuários de celular cubanos.
Em seu auge, até 68 mil cubanos usavam o "Zunzuneo", semelhante ao Twitter. Isso conferia potencialmente aos EUA (era isso, pelo menos, o que esperavam os criadores do aplicativo) uma plataforma para induzir "flash mobs" antigoverno, identificar potenciais líderes oposicionistas e ampliar os setores dissidentes. A ação de Washington em tudo isso era oculta.
Um histórico breve: sob George W. Bush e com milhões de dólares e muito apoio político do Congresso, a Usaid, o Departamento de Estado e outras agências governamentais desenvolveram uma nova interação das velhas políticas de desestabilização: penetrar o bloqueio de informação do regime, promovendo acesso a novas tecnologias para a população cubana. Bush e seu pessoal não faziam esforço para ocultar suas intenções: falavam francamente sobre mudança de regime.
O governo Obama levou esses programas adiante e os desenvolveu mais, mas com o discurso mais liberal de "promover a democracia" ou "fortalecer a sociedade civil". (Esses conceitos deveriam estar acima de críticas, mas, quando viram eufemismos para mudança de regime, perdem seu teor idealista.)
A então secretária de Estado Hilary Clinton fez da ampliação da "liberdade da internet" uma das bases para promover a democracia em regimes autoritários, especialmente no contexto da Primavera Árabe.
Presume-se que os gênios digitais que tinham chegado à Casa Branca e ao Departamento de Estado, em muitos casos após ter êxito na área de mídia social da campanha presidencial de 2008 de Obama, tenham injetado uma certa dose de inovação e esperança nos guardiões burocráticos dos 50 anos de fracasso de Washington ante Cuba.
Há muitas ironias presentes. Esquemas quase disfarçados como o Zunzuneo supostamente visam promover um clima de transparência e liberdade de expressão nos países alvos. Outra ironia: o objetivo das sanções econômicas contra Cuba, que Obama fortaleceu no setor financeiro e bancário internacional, é privar o regime de receita. Mas o sucesso do Zunzuneo dependia dos serviços de telefonia celular prestados pela companhia telefônica cubana, uma estatal.
Para manter esse canal, uma das firmas de fachada criadas pela Usaid encontrou um jeito de fazer pagamentos em divisas --sim, a receita que as sanções supostamente devem impedir de chegar-- por meio de um banco de um país terceiro, diretamente para os cofres cubanos.
Audiências no Congresso vão pedir a funcionários do governo que expliquem algumas destas ""hã--contradições. Minhas perguntas: quem comanda a política de Obama para Cuba? Como esses programas podem superar algo que Obama, o vice-presidente Biden e o secretário Kerry já admitiram ser um fracasso que dura 50 anos?
Folha, 09.08.2014
www.abraao.com


www.abraao.com

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Trocando figurinhas


O PSDB organiza seu primeiro evento internacional em torno da candidatura do senador Aécio Neves. A intenção é sinalizar ao eleitor brasileiro que um governo tucano fará uma guinada em política externa.
Tudo ótimo com isso, não fosse a lista tentativa de convidados: Álvaro Uribe (Colômbia), Henrique Capriles (Venezuela), Ricardo Lagos (Chile) e Sergio Massa (Argentina).
A foto de Aécio rodeado por essa turma equivale a um prato servido em bandeja de prata para a campanha do PT.
Afinal, contra Uribe pesam graves acusações de abuso de direitos humanos e outras ilegalidades. Capriles depende da dinâmica imprevisível que assola seu país, e o esforço para apresentar-se como a opção moderada ainda não ganhou raiz. Lagos deixou o poder com 70% de aprovação popular. Há oito anos.
E tem o convidado argentino. Educado no esquema de poder de Carlos Menem e treinado no kirchnerismo, Massa tem um histórico de posições capaz de deixar Aécio absorto num silêncio constrangedor.
Esses convidados não têm projeto político possante nem projeção internacional capaz de alavancar um presidenciável brasileiro. Transformá-los em companheiros de travessia por quê?
Ao utilizar esse método para diferenciar-se da política externa de Lula e Dilma, o PSDB arrisca cometer o equívoco pelo qual denunciou o PT durante anos: a partidarização da política externa. Agora, em vez de avançar pela esquerda, ela avançaria pela direita.
Se esse encontro for adiante, a campanha de Dilma não será a única beneficiada.
Ao apresentar a política externa de Aécio em termos anti-Lula, os tucanos também abrem caminho para o candidato melhor posicionado apresentar um projeto pós-Lula: Eduardo Campos.
Esta coluna analisará o projeto internacional de Campos nas próximas semanas.
É possível Aécio marcar diferença clara em relação a Dilma sem precisar se vincular a políticos sul-americanos de estirpe duvidosa?
Claro que sim. Mas ele teria de partir para o ataque sem viseira ideológica.
No Equador, o tucano encontraria Rafael Correa para apresentar-lhe uma proposta de transparência para os contratos internacionais do BNDES.
Correa pode ser dilmista, mas seu interesse em acabar com a opacidade dos empréstimos falará alto.
Na Bolívia, Aécio encontraria Evo Morales e os governadores do país para ouvir suas reclamações a respeito de Brasília. A lista é extensa.
No Paraguai, o candidato do PSDB mostraria ao público brasileiro que a única forma de lidar com o narcotráfico, o crime organizado e o contrabando de armas leves que embrutece nossa vida cotidiana é um programa sério de cooperação com o país vizinho.
Nem Lula nem Dilma tentaram algo assim. Solidariedade regional é isso.
Na Venezuela, Aécio encontraria estudantes, líderes de oposição e o próprio Nicolás Maduro. Maduro é dilmista, claro. E daí?
Estadista senta à mesa para resolver problemas, não para trocar figurinha. 
Folha, 02.04.2014
matias spektor
Matias Spektor ensina relações internacionais na FGV. É autor de 'Kissinger e o Brasil'. Trabalhou para as Nações Unidas antes de completar seu doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Foi pesquisador visitante no Council on Foreign Relations, em Washington, e em King's College, Londres. Escreve às quartas, a cada duas semanas.