quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A resiliência americana e a eventual adesão brasileira ao novo ciclo de globalização

MATIAS SPEKTOR
O mundo à esquerda
Estratégia internacional do Brasil foi baseada na tese, equivocada, de que poder dos EUA declinaria a longo prazo
Acaba de sair uma leva de estudos a respeito do impacto da crise financeira de 2008-2009 sobre o equilíbrio de poder mundial.
O material sinaliza uma mudança nos termos da conversa global sobre o tema, pois revelam que nem os Estados Unidos declinaram nem a China ascendeu como muitos esperavam. Pelo contrário, a hegemonia econômica norte-americana apresentou uma fabulosa capacidade de adaptação.
Os autores são acadêmicos e intelectuais de esquerda cujos trabalhos podem ser lidos nos números mais recentes de "International Studies Quarterly" e "Review of International Political Economy".
De 2008 para cá, os investidores norte-americanos galgaram posições na carteira de ações de multinacionais de países como China, Índia e Brasil.
Em eletrônicos, farmacêuticos, mídia, petróleo e serviços bancários, a preponderância norte-americana ficou inquestionável.
Um fator central é a resiliência do dólar: não tem euro, renminbi ou cesta de moedas capaz de desafiá-lo. Não à toa, após a crise, o governo chinês incrementou sua compra de títulos do Tesouro norte-americano. E quando a agência Standard and Poor's rebaixou a nota da dívida dos Estados Unidos, em 2011, o mercado não reagiu fugindo, mas investindo ainda mais.
"Ah", dizem os críticos, "mas os Estados Unidos têm um deficit gigantesco". Sim, e sua capacidade de mantê-lo revela a dimensão de sua força.
"Mas a desigualdade americana está em alta". E você esperava o que de um capitalismo pujante?
"Mas o desemprego nas capitais americanas aumenta". Claro, os investidores americanos migraram a produção industrial pesada e mais poluente para a Ásia, em busca de melhores margens de lucro.
Sem dúvida, a gestão da ordem global está muito longe de ser controlada pelos Estados Unidos. E as vozes fora do Atlântico Norte têm uma influência antes inimaginável.
Mas os estudos mostram que a expectativa de uma nova distribuição de poder no cenário internacional foi exagerada.
A consequência disso para a condução da política externa brasileira é direta: boa parte da estratégia internacional brasileira durante os últimos anos foi baseada na tese de que, a médio e longo prazo, o poder americano declinará.
Se o cenário é de hegemonia inconteste dos Estados Unidos, qual diplomacia é mais benéfica para os 200 milhões de brasileiros?
Até agora, a única figura pública a alertar para a retomada econômica dos Estados Unidos e seus impactos geopolíticos tem sido FHC. Sua conclusão é a esperada: o país precisa de um novo ciclo de adesão à globalização.
Falta saber o que pensa a esquerda. Aderir ao novo ciclo de globalização pode resolver uma série de problemas, mas criará outra.
Se o poder americano segue em alta --e se a ênfase em diplomacia Sul-Sul apresenta, por isso mesmo, limites estreitos--, o que fazer?
Fonte: Folha, 11.12.13.

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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Diplomacia americana no rumo certo

INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN
BOSTON
Em "The Unwinding" (O desenrolar), seu ótimo livro sobre o desgaste da tessitura social dos Estados Unidos, George Packer dedica um capítulo a Colin Powell, o ex-secretário de Estado que não enxergou como estava sendo driblado por ideólogos, que o induziram a apresentar argumentos públicos em favor de uma guerra no Iraque de cuja justificativa ele próprio tinha dúvidas.
Quando a guerra no Iraque começou, o presidente George W. Bush disse que andava dormindo como um bebê [ou seja, sem preocupações]. Packer relata que a resposta de Powell foi: "Eu também ando dormindo como um bebê. De duas em duas horas, acordo gritando."
Uma década se passou desde então, e a gritaria praticamente não parou. Diatribes, calúnias, discursos em tom grandioso e posições pouco razoáveis vêm acompanhando uma política externa americana ziguezagueante em que o papel do Departamento de Estado em muitos momentos tem sido secundário ao da Presidência, do Pentágono e da Agência Central de Inteligência (CIA). Os grandes problemas -Afeganistão, Irã, Israel-Palestina- continuaram como feridas abertas. Surgiram outros, no Egito e na Síria. A política externa em muitos momentos parece ter sido ditada, ou frustrada, por quem grita mais alto. A estadística tem sido um termo quase pitoresco, de tão distante do que se tem visto na prática.
Em seu primeiro mandato, o presidente Obama tentou frear a ampliação dos assentamentos israelenses na Cisjordânia. Assim que a previsível gritaria começou, ele deixou a questão de lado. Envolveu-se numa cacofonia em torno do Afeganistão. O resultado foi um custoso envio de tropas adicionais. Apenas agora é que Obama parece estar descobrindo o trabalho árduo e o "toma lá, dá cá" da diplomacia.
John Kerry é um secretário de Estado muito diferente de Hillary Clinton, que enxergava o cargo por uma ótica política sobretudo doméstica e, por essa razão, relutava em encarar os problemas realmente difíceis. Kerry já perdeu sua chance de ser presidente. Para ele, o que conta são as conquistas diplomáticas significativas.
O acordo interino com o Irã, congelando o programa nuclear desse país no ponto onde está por seis meses, enquanto se busca um acordo pleno, representa uma conquista enorme. É o melhor trato que poderia ter sido feito agora. Cria algum espaço para o Irã e os Estados Unidos reduzirem seu distanciamento (nenhum acordo final fará qualquer sentido se os dois países continuarem envolvidos numa virtual guerra indireta em várias frentes). Mas, para além de sua utilidade prática, o acordo fechado em Genebra tem grande significado político.
Ele foi concluído a despeito da forte oposição de Israel, da rejeição acirrada do poderoso lobby pró-Israel nos Estados Unidos e da hostilidade no Congresso. Pagando um custo político importante por isso, Obama desafiou facções que têm sido dominantes. Ele o fez baseado na convicção de que o acordo atenderá aos interesses de longo prazo dos EUA. Foi um ato de coragem política que se fazia muito necessário.
Pesquisas de opinião mostram que a maioria dos americanos é a favor do acordo, assim como muitos membros influentes do establishment de segurança e defesa. Numa carta às lideranças do Senado e da Câmara de Deputados, cinco ex-embaixadores dos EUA em Israel e quatro ex-subsecretários de Estado, incluindo Thomas Pickering e Nicholas Burns, disseram que o acordo é um avanço. Eles escreveram:
"Estamos cautelosamente esperançosos de que os Estados Unidos, juntamente com outras potências mundiais, chegarão dentro de seis meses a um acordo abrangente que impeça o Irã de obter uma arma nuclear, que resulte no desmantelamento máximo possível do programa iraniano e que reduza muito o incentivo iraniano para até mesmo considerar tal opção." Eles notaram, também, que "décadas de apoio americano constante às necessidades de segurança de Israel hoje garantem que as muito conhecidas e amplamente compreendidas capacidades militares estratégicas de Israel sejam muito superiores às do Irã; e a situação deve continuar a ser essa".
Mesmo Henry Kissinger e George Shultz, dois ex-secretários de Estado republicanos que têm reservas em relação ao acordo interino, admitem que alguma capacidade nuclear iraniana limitada e estritamente monitorada fará parte de qualquer acordo de longo prazo possível. Eles escreveram no "Wall Street Journal":
"A diplomacia americana tem três tarefas pela frente: definir um nível de capacidade nuclear iraniana limitada a utilizações civis plausíveis (alcançando salvaguardas para assegurar que esse nível não seja excedido), deixar aberta a possibilidade de um relacionamento genuinamente construtivo com o Irã e traçar uma política para o Oriente Médio ajustada às novas circunstâncias."
Pelo fato de que a diplomacia americana retornou, desafiando a horda que declama discursos, essa tarefa imensa hoje já deixou de ser impossível.
    Fonte: NYT

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Na África, tradings invertem o fluxo e miram mercado interno: Continente é visto como mais aberto a companhias privadas

DO "FINANCIAL TIMES"
Na fábrica de processamento de alimentos que dirige em Lagos, Mukul Mathur descreve os milhares de quilômetros que seus tomates percorrem. À primeira vista, a odisseia entre a Nigéria e a Califórnia parece corriqueira, na era da globalização.
Mathur pode parecer apenas mais um comerciante adquirindo matérias-primas na África e as vendendo em mercados distantes e mais ricos.
Mas na verdade ele opera uma cadeia de suprimento que contraria as rotas de comércio da era colonial.
"Plantamos tomates na Califórnia, os processamos em forma de concentrado triplo e embarcamos o produto para a Nigéria", diz Mathur, comerciante nascido na Índia, na fábrica de US$ 12 milhões que a Olam, uma das maiores tradings --como são conhecidas as empresas que negociam commodities--, abriu em Lagos este ano.
A rota de suprimento de commodities da Califórnia à Nigéria teria sido impensável uma década atrás, quando o mundo dos negócios internacionais ainda considerava a África como um continente no qual a atividade econômica estava em declínio.
Mas com a aceleração do crescimento econômico, a demanda interna africana também está explodindo.
Para as tradings, essa é uma grande oportunidade que está invertendo seu modelo tradicional de negócios.
No jargão do setor, a África sempre foi um negócio de "origem", fornecendo matérias-primas para o exterior: ouro da África do Sul, café da Etiópia, petróleo da Nigéria, cacau da Costa do Marfim e cobre de Zâmbia.
A exportação de commodities africanas canalizou milhões de dólares aos cofres de magnatas estrangeiros.
Mas, nos últimos cinco anos, um novo negócio com a África como "destino" emergiu. "O potencial da África é imenso", diz Ivan Glasenberg, presidente da Glencore Xstrata, maior operadora mundial de commodities.
Outras grandes tradings de commodities como a Vitol e a Trafigura, da Suíça, investiram bilhões de dólares no continente, nos últimos cinco anos, para atender aos consumidores regionais.
A Cargill, maior trading mundial de commodities agrícolas, está estudando um primeiro investimento na Nigéria, e pretende plantar mandiocas no país para produzir amido e adoçantes.
Sua rival Louis Dreyfus Commodities recentemente formou uma joint venture com o Willowton Group, da África do Sul, para vender arroz aos sul-africanos.
A florescente demanda por commodities não é exclusivamente africana. Ásia e América Latina também têm apetite voraz por matérias-primas mas, nesses casos, empresas estatais desempenham papel maior nas operações de commodities. A África oferece às tradings mais liberdade de operação.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Livro Branco da Política Externa: Bibliografia Básica (Matias Spektor)

Livro a ser redigido pelo governo ajudará a definir prioridades e disciplinar interesses contraditórios
O governo promete redigir um "Livro Branco de Política Externa".
Caso examine a relação entre objetivos estratégicos e meios disponíveis, a empreitada merecerá um aplauso vigoroso.
Uma estratégia de política externa usa recursos escassos para criar poder, prestígio e influência no cenário mundial. Tal ascensão, quando acontece, oferece ganhos concretos ao cidadão comum, que vive num sistema global interligado.
O processo de elaboração do "Livro Branco" pode ajudar a esclarecer quais estratégias são mais viáveis e desejáveis ao Brasil de hoje.
O exercício é valioso porque o ambiente internacional em que vivemos é bem distinto daqueles de 1995 e de 2003, quando FHC e Lula apresentaram suas estratégias.
De Mercosul a Brics, da presença na África ao relacionamento com as grandes potências, a demanda atual por ajuste e inovação na política externa brasileira é ampla.
O processo do "Livro Branco" poderá aglutinar, pela primeira vez, uma torrente de informações públicas sobre esses assuntos.
Ganhará força se aproveitar a evidência empírica produzida por universidades, Ipea, ONGs e consultorias de comércio exterior, cujas estatísticas e estudos --cada vez mais profissionais-- raramente informam a formulação de política externa.
Ganhará também se conseguir dialogar de fato com uma sociedade civil cada vez mais engajada em assuntos de política externa.
Uma vez pronto, o "Livro Branco" terá várias utilidades. Servirá para brigar por orçamentos e disciplinar os interesses contraditórios das burocracias. Ajudará a estabelecer prioridades, calibrando a ênfase dada a cada assunto da pauta.
Seu valor principal, contudo, será o de provocar uma conversa coletiva sobre diplomacia, energizando o aparecimento de ideias.
Sem dúvida nenhuma, a redação do texto será feita a poucas mãos e em sintonia total com o Planalto. Por isso, o exercício será objeto de disputa entre governo e oposição, alimentando divisões de praxe.
No entanto, qualquer tentativa das partes de empastelar o debate público encontrará um ambiente intelectual mais sofisticado e, por isso mesmo, menos tolerante com a empulhação.
Uma leitura de cabeceira útil para a jornada que começa é o monumental "Strategy: a History", de Laurence Freedman (US$ 14,49).
Em suas relações públicas, o governo diz querer uma diplomacia de resultados concretos.
Talvez o Planalto não precise aguardar a publicação do "Livro Branco" para soltar os 174 atos internacionais parados na Casa Civil à espera de rubrica presidencial.
Tais instrumentos facilitam a cooperação financeira com terceiros países e evitam dupla tributação, por exemplo.
Encalhados, eles punem o trabalhador brasileiro, cujo bem-estar depende do comércio externo. Castigam também as amizades: em julho passado, o primeiro-ministro da Turquia teve de fazer cobrança em caráter pessoal. Ele ainda espera uma solução.
É o tipo de nó que nem mesmo um Itamaraty povoado de engenheiros poderia desatar.



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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Egocêntricos, vítimas ou heróis? Transgressões no Itamaraty

RESUMO Dentro de um ministério regido por hierarquia e normas próprias como o Itamaraty, atos de rebeldia são pouco comuns. Historiador das relações internacionais faz um apanhado de casos em que representantes do país atuaram contra as regras estabelecidas, com motivações diversas, da convicção ética à pequeneza pessoal.

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Como em uma orquestra, vige no Itamaraty, ministério hierarquizado e dotado de regras próprias, um ritual de obediência que visaria desmotivar, cercear e eventualmente punir a dissidência. A Casa --como muitos chamam o MRE-- não estimularia a independência de pensamento.
A desobediência não é fato tão comum na história do ministério. A maioria dos diplomatas é disciplinada e segue as regras. Quase sempre é quando as ordens ferem os princípios de um diplomata que pode surgir um transgressor.
Em 2008 fui chamado a falar sobre o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954) aos alunos do Instituto Rio Branco em Brasília. Era um sinal positivo e curioso que a Casa convidasse alguém para falar aos futuros diplomatas sobre um embaixador que fez o que eles não deveriam de modo algum fazer: deixar de cumprir as orientações e ordens da chefia.
Representante do país na França ocupada, Souza Dantas não seguiu as orientações do Estado Novo (1937-45) de Vargas e praticou ajuda humanitária, emitindo vistos a perseguidos do nazismo.
Alguns articulistas, acadêmicos e jornalistas têm se referido a Souza Dantas quando opinam a respeito do recente caso envolvendo o diplomata brasileiro Eduardo Saboia, que ajudou na fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina, asilado na Embaixada do Brasil em La Paz por quase 500 dias.
Em uma primeira análise, os casos de Souza Dantas e de Saboia têm pouco em comum. Enquanto Souza Dantas encontrou dificuldades morais em seguir a determinação da Secretaria de Estado, Saboia aparentemente teria enfrentado o silêncio quanto a como proceder para contornar a situação envolvendo o senador boliviano.
Nem todas as transgressões ocorridas no MRE deixaram registros escritos; alguns casos de diplomatas rebeldes só puderam ser apurados nos corredores da Casa. Nem todas, também, se deveram a motivos de consciência ou humanitários --várias tiveram mesmo origem em fatos comezinhos.
PERU
Eram fins de 1902 quando Manuel de Oliveira Lima foi indicado para a nossa representação no Peru. Desagradado com o destino, postergou o quanto pôde sua volta do Japão, onde estava lotado, apesar de o barão do Rio Branco ter solicitado com máxima urgência seu retorno ao Brasil --a demora se estendeu por mais de seis meses.
O desentendimento com o barão do Rio Branco agravou-se ao longo de 1903, com a publicação de artigos de Oliveira Lima em jornais expressando críticas às decisões da política externa brasileira. Citando o visconde de Cabo Frio, teria afirmado: "Peru só na mesa, assado, e para quem gosta. Eu não gosto".
Eleito para a Academia Brasileira de Letras, em seu discurso de posse em julho de 1903, na presença do presidente da República e de outras autoridades, Oliveira Lima teceu críticas à situação da carreira diplomática brasileira. Desejava ir para a Europa, mas acabou sendo enviado para a Venezuela onde permaneceu por três anos.
A intempestividade em público também atingiu Rui Barbosa.
Sem ser diplomata de carreira, em 1916 ele foi escolhido para representar o Brasil em importantes cerimônias comemorativas na Argentina. Naquele momento, o governo brasileiro ainda se mantinha neutro em relação ao conflito que seria conhecido mais tarde como Primeira Guerra Mundial.
Em 14 de julho, sob o argumento de que já estavam concluídas as cerimônias oficiais e que se expressava não como representante diplomático --embora tivesse exigido um salário mensal de embaixador--, Rui Barbosa pronunciou um discurso no qual assumia posição favorável a um dos lados em conflito, o dos aliados.
Nessa época, Luiz Martins de Souza Dantas respondia interinamente pelo Ministério das Relações Exteriores. Mesmo com antigas ligações de amizade entre as famílias, a defesa de posição divergente produziu acusações mútuas, bate-bocas nos jornais e o rompimento definitivo entre os dois.
Curioso foi o caso em que uma rebeldia foi respondida com outra.
Mário de Pimentel Brandão era embaixador na Bélgica quando os alemães invadiram o país, em 1940. Bruxelas estava sob bombardeio, o que levou o governo belga e todo o pessoal diplomático a fugir --Brandão inclusive. Do Rio, o secretário-geral do Itamaraty, embaixador Maurício Nabuco, dirigiu a Brandão uma repreensão por ter abandonado o posto sem a devida autorização do governo brasileiro e a divulgou por circular.
A resposta de Brandão, também aberta, foi de que se na antiga Roma de Calígula um cavalo havia sido feito cônsul, não era de se admirar que no Brasil moderno outro cavalo (algumas versões mencionam "burro") houvesse chegado a embaixador e a secretário-geral.
Sem conseguir do governo punição de Brandão pela resposta, Nabuco passou a transgressor: simplesmente abandonou o posto e viajou para Petrópolis e lá permaneceu. Foram precisos meses (e pedidos cordiais do presidente da República) para que o secretário-geral voltasse ao trabalho.
CÉLULA
Em 1952, com o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade, cinco diplomatas foram, a partir de uma denúncia, acusados de criar uma "célula comunista" dentro do MRE. Eram eles João Cabral de Melo Neto, Antônio Houaiss, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Jatyr de Almeida Rodrigues e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira.
Em 20 de março de 1953 foi publicado o despacho do presidente da República: Vargas seguiu o parecer do Conselho de Segurança Nacional e a proposta do ministro das Relações Exteriores, assinando decretos que colocavam os cinco "em disponibilidade inativa" --ou seja, sem remuneração.
O processo ainda foi enviado à chefia de polícia para promover a apuração "da responsabilidade criminal dos indicados". Os cinco impetraram ações no Supremo Tribunal Federal e só no ano seguinte seriam reintegrados ao Itamaraty. Houaiss e Almeida Rodrigues seriam aposentados compulsoriamente depois do golpe de 1964.
Álvaro de Barros Lins não era diplomata de carreira, mas em setembro de 1956 foi nomeado embaixador do Brasil em Lisboa por Juscelino Kubitschek. Desgastou-se com a ditadura salazarista por criticar o Tratado de Amizade e Consulta entre Brasil e Portugal, que considerava "lesivo" aos interesses brasileiros.
Em 1959 o Brasil concedeu asilo político ao general Humberto da Silva Delgado, líder oposicionista português. O governo português não reconheceu o asilo. Considerando a reação de Kubitschek ao fato insuficiente e acusando-o de cúmplice com as ditaduras, saiu do posto em outubro do mesmo ano. Delgado foi assassinado pela polícia política de Salazar próximo á fronteira espanhola em 1965.
Foi contra a nascente ditadura brasileira que se insurgiu, em 1964, o embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues. Em serviço em Genebra na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), ao receber o comunicado da deposição do presidente João Goulart, telegrafou ao Itamaraty: "Não sirvo a governos gorilas". No dia 2 de julho, sua aposentadoria foi publicada com base no primeiro dos atos institucionais militares.
ZUM-ZUM
O regime militar brasileiro teria no diplomata Manoel Pio Correa um aguerrido defensor da ordem. Em 1966, ao assumir a função de secretário-geral, Pio Correa deixou claro que não gostava de diplomatas "pederastas", "vagabundos" e "bêbados" --os termos são do próprio diplomata, conforme citados em suas memórias ("O Mundo em que Vivi").
Logo descobriu que Vinicius de Moraes, lotado ali, não era assíduo ao trabalho. Além disso, era contratado da casa noturna Zum-Zum, em Copacabana, onde se apresentava todas as noites.
Convocou-o propositalmente em uma manhã bem cedo para lhe dar duas opções: ou largava o trabalho noturno e assumia uma função ou pedia licença sem vencimentos. Vinicius foi obrigado a licenciar-se. O AI-5 o aposentaria compulsoriamente em 1968.
A atividade artística quase foi daninhas a outro homem de letras. José Guilherme Alves Merquior foi, desde cedo, muito presente no meio intelectual de sua época.
Em 1962, aluno do Instituto Rio Branco, ele participou da organização de um festival de cinema russo. No ano seguinte (ao fim do qual tomaria posse como terceiro secretário do Itamaraty), foi convidado a dar um curso de introdução à estética no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e chamou a falar o marxista Leandro Konder. Teria ainda coordenado uma exposição de fotógrafos cubanos.
Designado para servir em seu primeiro posto internacional em 13 de maio de 1966, teria sido inquirido a respeito dessas atividades que flertavam com a ideologia comunista --segundo conta-se, por pouco não foi cassado.
Uma disputa de cunho pessoal quase coloca o Brasil em um grave incidente com a Síria de Hafez al-Assad --pai do atual ditador sírio, ele havia tomado o poder via golpe de Estado em 1970.
Entre 1969 e 1972, Roberto Luiz Assumpção de Araújo era embaixador em Damasco. Assad passou a cobiçar a casa na qual Assumpção estava instalado, tentando convencê-lo a se mudar. O embaixador não cedeu, e os dirigentes sírios passaram a utilizar outros meios de pressão, que incluíram o corte sistemático de energia e água da residência. Sem sucesso, obstruíram o esgoto, o que produziu uma situação insustentável.
Assumpção, ao invés de dar-se por vencido, arriou a bandeira brasileira e seguiu com o protocolo de rompimento de relações diplomáticas com o país árabe. O caso produziu alvoroço na comunidade sírio-brasileira, que se lançou em reclamações contra Assumpção. Uma ordem expressa de Brasília finalmente convenceu o embaixador a deixar a casa.
Para alguns, os atos de José Maurício Bustani quando diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq) o qualificam como transgressor --e, se não o foi com relação ao Itamaraty, certamente pode-se dizer que ele entrou em choque com o governo norte-americano.
Eleito para a Opaq no período 1997-2000 e reeleito para o quadriênio seguinte, 2001-2005, ele agiu de maneira independente a fim de tentar fazer fazer com que as regras valessem do mesmo modo para todos os países.
O governo George W. Bush passou a vê-lo como obstáculo, e Bustani não chegou a concluir o segundo mandato: menos de um ano antes do início da segunda guerra do Iraque, os Estados Unidos passaram a articular pela sua remoção do posto, o que acabou por ocorrer em abril de 2002.
DESALINHO
Com a inauguração do governo Lula e sua diplomacia influenciada pela perspectiva do PT, diversos funcionários tidos como contrários à nova política foram marginalizados na carreira e em suas funções. Um dos casos mais notórios foi o do também acadêmico Paulo Roberto de Almeida, conhecido autor de diversos artigos em "desalinho" com as novas orientações ideológicas.
Ainda há muita nebulosidade em relação ao ocorrido no caso recente envolvendo o nosso diplomata Saboia e o senador boliviano. No momento não é possível saber em que medida instruções informais foram ou deixaram de ser cumpridas. Houve consulta preliminar sobre eventual saída clandestina? Houve resposta negativa e Saboia descumpriu a ordem? Não existiu qualquer ordem e ele atuou no limite ou além de sua competência? Quais foram precisamente as orientações e ações da secretaria de Estado para solucionar o impasse? Os apelos para uma solução foram respondidos?
O distanciamento temporal dos fatos e o acesso suficiente às informações são elementos fundamentais para o esclarecimento das ideias e das ações e bons balizadores de toda e qualquer transgressão, potencialmente transformando os transgressores em egocêntricos, vítimas --nem sempre do Itamaraty, mas também dos governos--, idealistas ou até heróis.
Fonte: Folha, 15 Set.2013. FÁBIO KOIFMAN
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