quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A morte da estratégia



Em vez de uma visão para a América Latina, há pequenos programas, iniciativas e "parcerias"


Resisto há muito tempo ao argumento superficial de que exista uma divisão fundamental na América Latina --esquerda/direita, vegetariano/carnívoro, bitolado/liberal, Estado/mercado, democrático/populista, Pacífico/Atlântico.
Essas correspondências rendem frases curtas de impacto, fáceis de digerir, mas geralmente deixam pouca margem para o claro-escuro, a área cinzenta em que a vida nacional e internacional ocorre de fato.
Sobretudo, a partir de onde estou sentada (literalmente), a apenas uma quadra da Casa Branca e a mais ou menos dois quilômetros do Capitólio, ainda me espanto com a dificuldade de Washington em elevar-se acima desses refrões.
Nas raras ocasiões em que de fato lida com a América Latina, a Casa Branca faz um trabalho muito melhor que o Congresso, reconheço.
Mas, como o Congresso controla as verbas e a confirmação de embaixadores e figuras seniores do governo, ainda enfrentamos uma falência da imaginação e da vontade política em Washington.
Em vez de uma estratégia para a América Latina baseada em interesses, temos grande número de pequenos programas, iniciativas e "parcerias", com pequenos orçamentos administrados por indivíduos de várias agências do Executivo aos quais, de modo geral, falta um quadro estratégico abrangente que venha de cima.
Sim, sim: secretários do gabinete e nosso dinâmico vice-presidente fazem muitas viagens à região, e a crise do momento (hoje em dia, a América Central) ganha atenção porque repercute diretamente sobre a política doméstica --imigração. Mas modo de crise e milhas aéreas não formam uma estratégia.
Não estou falando em uma "estratégia de contenção" ao estilo de George Kennan. O mundo, incluindo a América Latina, é complicado demais para algo tão simples.
Mas o que dizer de diretrizes básicas, assentadas sobre uma avaliação realista de nossa interdependência, nossas linhas de falha e oportunidades que isso encerra?
Na ausência de um quadro estratégico, as mulheres e os homens responsáveis pelas políticas para a região são forçados a agir mais como responsáveis por programas de fundações filantrópicas, vasculhando a região em busca de destinatários aceitáveis dos recursos minguantes de um patrono financeiro repreendedor, arbitrário e politizado.
Existe outro problema, e aqui vou revelar minha idade. Um amigo meu que durante anos trabalhou com política para a América Latina em várias agências do governo observou que faltam aos burocratas políticos de Washington nascidos desde a era Reagan (1981-89) ferramentas básicas de discernimento e análise.
Ui! Ele não estava expressando saudades da Presidência de Reagan, embora o bipartidarismo da época seja inexistente hoje. Creio que o que ele quis dizer é que Washington era uma cidade onde as ideias, e não apenas a ideologia, importavam, mesmo que um pouco.
Hoje a cidade é suscetível ao discurso simplista porque, lamentavelmente, para avançar profissional e politicamente é preciso sucumbir linguisticamente --logo, intelectualmente-- à tirania da tática. Folha, 19.11.2014.
@JuliaSweig
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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O mundo fala, o Brasil se cala


Proliferam, mundo afora, acordos comerciais até entre rivais, enquanto o governo Dilma se omite


Reuniões de cúpula como a do G20, neste próximo fim de semana, servem sobretudo para falar de negócios entre os governantes.
Pena que o Brasil de Dilma Rousseff tenha pouco ou nada a dizer a respeito nos encontros previstos com pesos-pesados como Vladimir Putin, Barack Obama e Xi Jinping.
Pouco porque todos vêm de suculentas conversas em outra cúpula, a da Apec, sigla em inglês para Cooperação Econômica Ásia-Pacífico.
Com Putin, Dilma poderia falar da crise na Ucrânia, mas o Brasil não tem posição a respeito. Não é contra nem a favor da intervenção russa no país vizinho.
Com Xi, pode falar do banco dos Brics, um nada perto do que o líder chinês tratou com seus colegas da Apec e até com seu rival Obama.
Tratou, por exemplo, do relançamento da FTAAP (Área de Livre-Comércio Ásia-Pacífico), conglomerado de 21 países que representam 50% do PIB global e 44% do comércio planetário.
O Brasil, claro, está fora. Não é banhado pelo Pacífico. Mas também não tem acordos com os países banhados pelo Atlântico, exceto o cambaleante Mercosul.
Se a política externa brasileira tem um viés ideológico, no que prefiro não crer, então talvez Dilma possa aprender algo com Xi Jinping.
A China, como se sabe, é o único outro polo ideológico a contrapor-se ao capitalismo liberal americano com seu capitalismo de Estado.
Não obstante, assinou com Obama um acordo para liberalização do comércio de bens de tecnologia, que abrange algo em torno de US$ 1 trilhão em comércio, cerca de 45% do PIB brasileiro.
Será agora levado à Organização Mundial do Comércio, enquanto a Confederação Nacional da Indústria batalha, inutilmente, para que o Brasil entre no acordo, também em discussão na OMC, sobre liberalização do comércio de serviços.
É verdade que está prevista, paralelamente à cúpula do G20, uma reunião dos Brics, mas é puro cumprimento de tabela, como diriam os cronistas esportivos.
Se a China pode se entender com os EUA até em matéria de ambiente --justamente eles, os dois maiores poluidores--, para que vai dar bola para os Brics, que, sem ela, perderiam todo o sentido?
A Índia, também dos Brics, não está parada: vai negociar, à margem do G20, um acordo de livre-comércio com a anfitriã Austrália, que, aliás, também discute mecanismo idêntico com a China.
Até na área de segurança a Índia fala grosso, ao contrário do omisso Brasil: está relançando a chamada "Otan Asiática", aliança militar entre ela, Japão e Austrália.
Para ser justo, é preciso dizer que o Brasil também tenta estabelecer um mecanismo de defesa conjunta no âmbito sul-americano. Mas o avanço é lento, talvez porque a América do Sul tenha o mérito de não ter os problemas de segurança da Ásia e do Oriente Médio, por exemplo.
Numa triste compensação, tem sérios problemas com a criminalidade, que, se não for combatida em conjunto, não será derrotada.
Tudo somado, não há como deixar de citar o bordão do genial José Simão: quem fica parado é poste, cara Dilma. Folha, 13.11.2014.

Cidadão Blair


Tony Blair foi o primeiro-ministro que governou o Reino Unido por mais tempo (1997-2007), vencendo três eleições consecutivas. Foi-lhe atribuído o crédito por salvar a monarquia britânica após a morte da princesa Diana. Blair personificava o "novo trabalhismo", o Partido Trabalhista britânico reinventado, pró-mercado, neoliberal, que deixara para trás o domínio exercido pelos sindicatos. Ele serviu como comparsa de George W. Bush em intervenções no Afeganistão, depois do 11/9, e no Iraque, em 2003.
Foi afortunado ao escolher a hora de partir, substituído por Gordon Brown um ano antes da pior crise financeira desde 1929. O colapso do Lehman Brothers foi seguido por operações de resgate do governo britânico a diversos bancos. A Europa até agora não se recuperou. Desde 2007, porém, Blair segue um caminho bem conhecido.
Ao estabelecer suas empresas, foi assessorado pela KPMG, em Londres, e pelo advogado Robert Barnet, que assessorou Bill Clinton em suas lucrativas operações pós-presidenciais. A configuração das empresas de Blair é perfeitamente legal, e "sociedades limitadas" não são obrigadas a publicar suas contas, sob a lei inglesa. Henry Kissinger estabeleceu a norma para tal tipo de "consultoria", tanto em termos de lucratividade quanto de sigilo do cliente.
O JP Morgan pagou US$ 10 milhões a Blair desde 2008. Ele também assessora a seguradora suíça Zurich, o governo de Abu Dhabi e o presidente Nursultan Nazarbayev, do Cazaquistão. Desde 2012, a Tony Blair Associates também assessora Geraldo Alckmin na "modernização" dos serviços públicos de São Paulo, como parte do projeto "São Paulo 2030".
O "Sunday Times" revelou nesta semana o que definiu como "o acordo secreto de Blair com os sauditas", que envolvia pagamentos para permitir acesso aos seus contatos. A PetroSaudi, petroleira que tem entre seus fundadores o príncipe Turki bin Abdullah Al Saud, pagava 41 mil libras/mês e uma comissão de 2% sobre os projetos que Blair ajudava a intermediar. A PetroSaudi tem projetos em Gana, Indonésia, Venezuela, Tunísia e Malásia.
Blair certamente prosperou. Tem uma casa na qual John Adams viveu como primeiro embaixador dos EUA em Londres, uma mansão que foi do ator sir John Gielgud.
Blair menciona seu papel como enviado (não remunerado) ao Oriente Médio do "quarteto" formado pela ONU, EUA, União Europeia e Rússia, bem como seu trabalho filantrópico na Faith Foundation e na África. "O objetivo não é ganhar dinheiro, mas fazer a diferença", disse a fiéis do novo trabalhismo no 20º aniversário de sua eleição como líder do partido.
Talvez. Deveria recordar Jimmy Carter, cujas atividades pós-presidenciais sem dúvida tornaram o mundo um lugar melhor, sem que isso lhe valesse muito dinheiro no processo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

MATIAS SPEKTOR A Casa Branca de Dilma


Em energia e mudança do clima, poucos emergentes têm mais a oferecer aos americanos do que o Brasil
O governo americano soltou nota sobre a reeleição de Dilma menos de 24h depois do pleito.
No dia seguinte, houve telefonema do presidente Barack Obama e, uma semana depois, de Joe Biden, o responsável pelo Brasil em Washington.
Ambos disseram à presidente querer remarcar logo a data da visita de Estado suspensa. O momento da proposta, respondeu a presidente Dilma ao telefone, é "extremamente oportuno".
Quando ocorrer, a visita ajudará a tirar a relação bilateral do buraco onde se encontra desde o escândalo da espionagem.
O trabalho diplomático será árduo porque os dois países ficaram sem o principal mecanismo capaz de servir como âncora e alavanca da relação nos próximos anos: o contrato bilionário para os jatos da Boeing que, na concepção original, facilitaria o engajamento muito além da mera cooperação militar.
Além disso, vigora hoje um ceticismo profundo no establishment americano a respeito do Brasil.
Não se trata apenas do mal-estar causado pela chamada "nova matriz econômica".
Na percepção norte-americana, em temas candentes como Estado Islâmico, Síria, Líbia, Irã, Rússia e comércio internacional, a atitude brasileira é imprevisível ou obstrucionista.
Por que, então, a insistência na visita de Estado?
Um fator, claro, é dinheiro. O comércio entre os dois países mais que dobrou em 12 anos e os fluxos de investimento são bárbaros, mas há espaço para muito mais.
Além disso, ninguém em Wall Street teme um calote brasileiro.
Outro fator é político. Obama aproxima-se do fim do mandato com uma economia fortalecida, mas com uma base política esfacelada.
Assim, está obcecado pelo legado que deixará nos livros de História. Em pelo menos duas instâncias --energia e mudança do clima--, poucos países emergentes têm mais a oferecer que o Brasil.
Claro, há entraves enormes para a cooperação. A promessa original do etanol, por exemplo, afundou diante do pré-sal.
A promessa do engajamento em tecnologia esbarra até hoje em camadas de burocracia. O custo de tentar, porém, é baixo.
Um fator adicional é a América do Sul. Ali, Brasil e Estados Unidos têm posições diferentes, mas não são adversários.
Pelo contrário, Washington aprendeu que não vale a pena se chocar de frente com Brasília nesses temas, sendo melhor tirar vantagem da capacidade brasileira de ter relações positivas com toda a vizinhança (apesar das divisões que racham a região e das tensões existentes entre o próprio Brasil e seus vizinhos).
Na perspectiva americana, isso importa porque Dilma poderá ter papel positivo nos dois testes regionais de 2015 --o fim do ciclo kirchnerista na Argentina e as eleições parlamentares do chavismo na Venezuela, áreas onde a influência americana é ínfima ou negativa.
A ida de Dilma à Casa Branca repetirá o padrão bilateral dos últimos anos --discórdia temperada por boa dose de acomodação. Podia ser bem pior. Folha, 12.11.2014

É preciso rever a política externa


Chegou a hora de diminuir a carga ideológica da política externa brasileira para darmos alguns passos em direção aos Estados Unidos


O Brasil tem dois ministérios para lidar diretamente com os assuntos relacionados ao comércio exterior. O Ministério das Relações Exteriores e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio poderiam obedecer à máxima que diz que "duas cabeças pensam melhor que uma".
Essa policefalia, no entanto, não evitou que o país acumulasse deficit comercial já no patamar de quase US$ 2 bilhões.
Na realidade, a nossa política internacional é uma serpente com muitas cabeças reunida na Camex (Câmara de Comércio Exterior). A Camex tem como finalidade dar coerência às nossas estratégias comerciais envolvendo diferentes setores. É a responsável pelos desequilíbrios no balanço entre o que compramos e o que vendemos ao mundo.
Tais desequilíbrios são resultado do processo precoce de desindustrialização nacional, que, por sua vez, também é bastante agravado por uma política externa comercial equivocada. Esse círculo vicioso no qual o país se meteu desde que optou por um alinhamento com a potência industrial chinesa a partir de 2008 é a causa maior do baixo crescimento do Brasil.
Com o fim das eleições, o governo continuará o mesmo, mas não necessariamente será mantida a política que nos enfraqueceu no cenário global. A julgar pelos problemas de crescimento da nossa economia, são possíveis ainda as mudanças no sentido de flexibilizar o Mercosul para nos permitir fazer negociações comerciais em separado e rever a aproximação intempestiva com Pequim que marcou a criação dos Brics.
No âmbito do G20, o Brasil caminhou muito até agora ao lado dos grandes emergentes asiáticos. A tradução disso em termos de crescimento para nós não é boa. Não vivemos as crises das nações desenvolvidas, mas também não experimentamos a expansão do capitalismo dos emergentes. Ficamos da média para baixo, até mesmo na América Latina.
As análises de câmbio foram ineficazes, pois o dólar subiu R$ 1 nos últimos quatro anos, justamente o período de maior queda das exportações. Até mesmo o idealizador dos Brics, Jim O'Neill, reconhece que o Brasil ficou chinês demais e que vender commodities é insuficiente.
Com o declínio da indústria, temos menos a oferecer ao mundo. Atuamos muito para eleger um brasileiro na OMC (Organização Mundial do Comércio) e o próprio presidente da organização, Roberto Azevêdo, faz hoje um pedido desesperado para salvar a instituição e a política externa que o colocou lá.
O problema maior é que o deficit comercial, a desindustrialização e o baixo crescimento já começam a atingir o emprego dos brasileiros. Ninguém sabe até quando a nossa economia aguenta manter os atuais níveis sensíveis em que se encontra.
Talvez mais alguns meses se nada for feito ou se não houver nenhuma outra guinada fantástica de globalização financeira no mundo e valorização das commodities que nos jogue para cima.
Não convém brincar com a sorte de milhões de brasileiros. Chegou o momento de diminuir a carga ideológica da política externa para darmos alguns passos em direção aos Estados Unidos, acabando de vez com os estranhamentos que pautaram nossas relações internacionais nos últimos anos.
Ao contrário das teses apocalípticas em torno do fim da era ocidental para esta década, os Estados Unidos estão crescendo, voltaram a ser nossos maiores compradores e podemos encontrar com eles combinações e parcerias mais favoráveis à nossa indústria exportadora.
Sem perder o foco, devemos buscar o reequilíbrio no nosso comércio e salvar o futuro dos nossos empregos. Governo novo, ideias novas.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Legado de Eduardo

MATIAS SPEKTOR

Em entrevista, denunciou a "diplomacia paralela" do PT e criticou a leniência com países vizinhos

Política externa nunca foi central no projeto pessoal de Eduardo Campos. Em sua trajetória --da política universitária à presidência do partido--, a conjuntura global não foi concebida como alavanca de poder nem como âncora de sua visão de país.
Não surpreende, portanto, que seus comentários sobre o tema encontrassem amparo no repertório diplomático do governo Lula, nem que, como candidato, ele evitasse bolas divididas sobre o assunto, que não lhe rendia votos nem magnetizava a sua militância.
Em maio passado, a conjuntura forçou uma mudança de atitude. Seus marqueteiros cobraram diferenças mais claras em relação a Dilma e a Aécio, criando identidade própria capaz de dar substância à promessa de superação da dobradinha PT-PSDB.
Inventar uma plataforma de política externa inovadora seria tarefa árdua. Não apenas há uma notável escassez de ideias a esse respeito no mercado intelectual, como o PSB, partido de Campos, tem tradição no assunto.
Sua voz mais eloquente é a de Roberto Amaral, nosso político profissional na ativa que mais escreve sobre relações internacionais.
Acomodar a cosmogonia de Amaral no projeto de Eduardo para 2014 estava fadado a ser um processo turbulento. Com seu estilo combativo, Amaral vislumbra uma política externa que bebe na Política Externa Independente dos anos 1960 e na visão de mundo do general Ernesto Geisel dos anos 1970.
Além do problema das ideias, havia o problema do poder. Amaral fez da política externa um baluarte do vínculo do partido com Lula e de sua própria autoridade sobre os correligionários.
Em sua posição, denunciou tudo aquilo que via como furor de Eduardo: a aliança com Marina, a convergência de ideias com Aécio e uma certa intolerância com as lideranças tradicionais da agremiação.
Dias antes de morrer, Eduardo tentou resolver o problema, cortando-o pela raiz.
A oportunidade apareceu quando a revista "Política Externa" comprometeu-se a publicar uma entrevista sem cortes nem edições a respeito da diplomacia de seu eventual governo.
As respostas de Eduardo golpeiam as teses mais tradicionais do partido. É Beto Albuquerque, não Roberto Amaral.
Rejeita-se a crença petista no declínio americano e defende-se o oposto: os Estados Unidos estariam vivendo uma vigorosa recuperação que os manterá na liderança econômica e tecnológica do planeta.
Na entrevista, Eduardo denuncia a "diplomacia paralela" do PT e critica a leniência com Argentina, Bolívia, Equador e, acima de tudo, Venezuela.
Ele oferece um caminho para flexibilizar o Mercosul, alerta para o risco embutido nos Brics e se diz compromissado com regimes globais de cunho liberal, seja em comércio ou direitos humanos.
O texto reconhece alguns trunfos de Lula estadista, mas mantém distância.
Se essa agenda terá futuro com Marina, ninguém sabe. Se bastará para disciplinar a nova constelação de forças no partido, também não. Folha, 20.08.2014.

É HORA DE DESTRAVAR A POLÍTICA EXTERNA

A economia brasileira é, hoje, uma das mais fechadas do mundo, com o comércio representando cerca de 20% do Produto Interno Bruto
Afora os Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e as relações com Pequim, a política externa brasileira travou, inclusive em setores prioritários --como Mercosul, América do Sul e comércio exterior.
O Mercosul está paralisado, se não em retrocesso. Em pouco mais de uma década, as vendas brasileiras para o grupo declinaram de 17% a 8% das nossas exportações. Os investimentos também caíram, enquanto as instituições do Mercosul não fizeram qualquer progresso significativo.
Chegou a hora da verdade para o Mercosul. Os países-membros do grupo terão de tomar decisões fundamentais: querem consolidar o livre-comércio? Pretendem manter a união aduaneira? Querem continuar a proteger bens intermediários, em detrimento da integração das cadeias produtivas?
Quaisquer que sejam as opções, o importante será cumprir as regras acordadas, de modo a restaurar a credibilidade que o Mercosul perdeu. Com a adesão da Venezuela ao grupo, inclusive a cláusula democrática virou letra morta.
Na América do Sul, em vez de caminharmos para a integração, marchamos a passos firmes para a desintegração, com o traçado de uma nova linha de Tordesilhas que separa o Mercosul, a leste, da Aliança do Pacífico, a oeste. O último grupo representa 34% do PIB e 51% do comércio da América Latina.
Em três anos, a Aliança do Pacífico avançou, em vários setores, mais do que o Mercosul. A busca de uma convergência entre os dois grupos encontra, no entanto, a resistência do Brasil.
Por fim, em comércio colocamos todas as fichas na OMC (Organização Mundial do Comércio). Com o fracasso, provavelmente definitivo, da Rodada Doha, ficamos a ver navios, pois não negociamos os acordos de comércio, bilaterais e regionais, que a maioria de nossos parceiros já concluiu.
O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, o mais importante deles, ainda não foi finalizado --pela resistência da Argentina em aceitar concessões que os seus parceiros no Mercosul já fizeram, e pela recusa do Brasil em prosseguir nas negociações sem a Argentina, como, de fato, pode e deveria.
O custo para o Brasil será alto. Como relembrou José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, o Brasil poderá perder, entre outras vantagens, o acesso privilegiado ao mercado europeu de carne, caso as negociações com Washington avancem rapidamente, pois serão concedidas aos Estados Unidos as quotas que poderiam beneficiar o Brasil.
A abertura da economia é precondição para a retomada do crescimento. Assim como as reformas econômicas são um requisito para que a indústria possa competir.
A economia brasileira é, hoje, uma das mais fechadas do mundo. O comércio representa cerca de 20% do PIB --no caso da China, este percentual é de 53%. O presidente chinês, Xi Jinping, em sua visita recente ao Brasil, declarou que seu país não seria o que é hoje não fossem a abertura do comércio e as reformas da economia -- e Xi Jinping é insuspeito de inclinações neoliberais.
O travamento da política externa não ocorre apenas em setores prioritários. O comércio com a África continua a representar 5% de nossas exportações, como há várias décadas. As relações com Washington estão num ponto morto, exatamente no momento em que os Estados Unidos promovem uma revolução energética como prelúdio para um processo de reindustrialização, que abrirá oportunidades novas para cooperação e comércio.
É preciso não confundir visitas diplomáticas e comunicados conjuntos generosos com programas e parcerias efetivas. Infelizmente, temos sido pródigos na retórica e modestos nos resultados.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Desconsiderar os Brics ou não?

JULIA SWEIG

Se eu fosse um negociador americano, não faria pouco caso da cúpula, vendo-a como 'banana' antiocidental

Meu colega da Folha Clóvis Rossi observou recentemente que meus colegas do Council on Foreign Relations ignoraram a cúpula desta semana dos Brics quando montaram o "Calendário de Eventos Mundiais" de julho. Quer tenha sido descuido editorial ou omissão consciente, é verdade que as cúpulas dos Brics e Brics-Unasul mal são registradas pelo radar de Washington.
Compartilho a previsão dos céticos de que é bem provável que as reuniões produzam mais simbolismo que substância. O ditado segundo o qual o simples comparecimento de um chefe de Estado de peso já é por si só o propósito realizável não chega a demonstrar o peso político/diplomático dos Brics (nem de qualquer outra cúpula regional, na realidade).
E quem pode discordar das observações de cautela em relação ao banco e fundo de estabilização dos Brics? O banco vai levar tempo para tornar-se operacional, e ainda há muitas perguntas sem resposta sobre seus critérios de concessão de crédito e pagamento, transparência e elegibilidade.
O financiamento dos Brics (leia-se: principalmente da China) à infraestrutura no mundo em desenvolvimento vai exigir condições ambientais de obras potenciais? Nenhum grau de irritação com o sistema de cotas do FMI ou a condicionalidade do Banco Mundial deve justificar a concessão de empréstimos que desrespeitem o ambiente em nome do desenvolvimento.
O olhar atento que as ONGs ambientais impuseram aos empréstimos concedidos por bancos multilaterais tradicionais vai agora, certamente e justificavelmente, estender-se para o banco dos Brics.
Outro argumento comum contra a relevância dos Brics é que Washington, Bruxelas, Paris, Londres e Berlim sempre estarão preocupadas com outras questões de segurança global para as quais necessitam da cooperação das potências emergentes, mas duvidam que a consigam.
Além disso, argumentam os céticos, as relações bilaterais entre cada membro dos Brics e Washington ou a Europa vão dominar em termos econômicos, políticos e geopolíticos no curto e médio prazo.
Mesmo assim, os pensadores estratégicos da comunidade do Atlântico Norte hoje preocupados com o Irã, a Ucrânia, Israel, a faixa de Gaza e o mar do sul da China podem prestar atenção por um instante.
Eles deveriam se perguntar o que significa o fato de que Xi Jinping e Vladimir Putin hoje se sentem confiantes o suficiente não apenas para prometer benesses financeiras --isso nós já ouvimos antes--, mas também para dar a entender que existem laços "políticos" mais profundos com os sul-americanos que participam da cúpula desta quarta-feira (16) em Brasília.
Washington, especialmente, deveria tomar nota: não são apenas Cuba, Venezuela e os outros países da Alba que estão diversificando seus portfólios comerciais, de investimentos e "políticos". A tendência de longo prazo de autonomia na política externa latino-americana e de hibridez nos modelos econômicos latino-americanos (nem ortodoxia do livre mercado nem capitalismo de Estado ou socialismo de Estado) desafia os Estados Unidos em termos não apenas históricos.

Laços econômicos, geográficos e humanos interligam estreitamente a região e os EUA, é certo. Mas, se eu fosse um dos americanos que precisam reunir votos no Conselho de Segurança da ONU, no FMI ou no Banco Mundial ou tivesse que montar uma coalizão para negociações climáticas exitosas, por exemplo, eu não me apressaria a fazer pouco caso das cúpulas dos Brics desta semana, enxergando-as como simples "banana" antiocidental simbólica.Folha, 16.07.14

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terça-feira, 17 de junho de 2014

Qatar tenta construir reputação diplomática

Por ROD NORDLAND e MARK MAZZETTI
DOHA, Qatar - Assim que chegaram, os cinco militantes do Taleban foram levados por uma frota de carros até o acostamento de uma rodovia nos arredores da capital. Ali, longe do olhar do público e sob o olhar atento da segurança qatariana, trocaram abraços com uma delegação que os recebeu. Então foram novamente levados, agora para um local desconhecido.
Se o Qatar cumprir o que promete, esses homens -libertados da prisão de Guantánamo em troca da soltura do sargento americano Bowe Bergdahl, mantido como refém no Afeganistão,- não vão voltar ao campo de batalha nem serão recrutados pelo Taleban como poderosa ferramenta de propaganda, pelo menos não por um ano.
Os trunfos em jogo são altos para o presidente Obama, fortemente criticado por ter, segundo alguns, pago um preço alto demais pela libertação de Bergdahl. No passado, alguns prisioneiros libertados de Guantánamo voltaram a combater.
Mas, nesse caso, o Qatar também tem muito em jogo, já que apostou sua reputação, já enfraquecida, em sua capacidade de manter os homens sob controle e longe das vistas de todos.
"Confiamos que o Qatar terá a capacidade de implementar as exigências e a vontade para tal", declarou um funcionário da administração Obama.
Antes da chegada dos presos, em 1° de junho, o Qatar prometeu que os talebans libertados não farão discursos, não darão entrevistas individuais ou coletivas e não sairão em público. Se telefonarem ao Afeganistão, prometeram os qatarianos, será para suas famílias, não para seus companheiros de armas. Eles estão proibidos de fazer qualquer agitação ou de sair desse país minúsculo no golfo Pérsico pelo prazo de um ano.
O Qatar, que há muito tempo aspira ter importância na diplomacia global, viu sua influência regional se enfraquecer na medida em que seus aliados no Egito, na Tunísia, na Síria e na Líbia perderam poder e força.
O país saiu-se mal, há um ano, quando um esforço para abrir uma representação do Taleban não rendeu discussões de paz com os EUA, como o Qatar esperava. Os representantes do Taleban no Qatar hastearam uma bandeira e começaram a agir como uma embaixada no exílio. O presidente afegão, Hamid Karzai, ficou furioso.
Os qatarianos estão determinados a garantir que nada dê errado desta vez. O xeque Tamim bin Hamad Al-Thani chegou ao poder em junho passado, após a abdicação inesperada de seu pai, o xeque Hamad bin Khalifa Al-Thani, imediatamente após as reações de ultraje pela abertura da representação do Taleban. Ele vem tentando conduzir a política externa do país para mais ênfase na mediação e menos na intervenção direta.
O Qatar controla a emissora Al Jazeera, e muitos de seus vizinhos reagem mal à cobertura crítica feita pelo canal de notícias. A política do Qatar de fornecer armas à oposição na Síria mostrou-se preocupante quando a guerra no país pareceu ter chegado a um impasse e facções extremistas jihadistas se destacaram entre os rebeldes sírios.
Em março, a Arábia Saudita, o Bahrein e os Emirados Árabes Unidos, três dos seis membros do Conselho de Cooperação do Golfo, tomaram a medida incomum de chamar de volta seus embaixadores no Qatar para protestar contra o apoio do Qatar à Irmandade Muçulmana, cujos ativistas tinham sido bem recebidos no país depois de fugirem do Egito.
"Estão tentando voltar a ser o Qatar de 2007, os bonzinhos, amigos de todo o mundo", disse Michael Stephens, do Royal United Services Institute, centro de pesquisas britânico. "Neste momento, o Qatar está tentando apenas avançar o quanto pode de uma maneira que seja inofensiva."NYT, 17.06.2014

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Aliança do Pacífico e Mercosul não são blocos excludentes

ENTREVISTA - HERALDO MUÑOZ
Chanceler do Chile afirma que seu país tem dialogado com o Brasil para uma integração continental, deixando de lado a ideologia
MÔNICA BERGAMOCOLUNISTA DA FOLHA
O Chile quer ser uma ponte entre a Aliança do Pacífico e o Mercosul, os dois principais blocos comerciais latino-americanos. E um não exclui o outro, como diz o chanceler chileno, Heraldo Muñoz, 65. Nesta entrevista, ele diz que o Chile tem um modelo de desenvolvimento "diferente" da Argentina ou da Venezuela, mas defende a convergência dentro do continente.
Folha - Quando Michelle Bachelet voltou à Presidência, o governo brasileiro disse que queria se aproximar muito do novo governo do Chile. Como será isso na prática?
Heraldo Muñoz - Tem havido um diálogo intenso entre as duas chancelarias. Reunimo-nos antes da posse [de Bachelet, em março] para nos coordenarmos para a primeira reunião da Unasul que, no Chile, trataria da Venezuela [onde ocorriam protestos].
Minha primeira visita bilateral foi ao Brasil. O país indicará um diplomata para integrar a missão chilena no Conselho de Segurança da ONU [o Chile ocupa um assento não permanente até o fim de 2015]. Em troca, o Brasil nos dará informações sobre países onde não temos chancelaria, especialmente os da África.
A nosso convite, os chanceleres do Brasil e da Argentina foram a uma reunião com 170 empresários da Apec [Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, na sigla em inglês]. E estamos falando de modalidades de convergência entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico.

A Aliança do Pacífico já foi definida como antídoto para governos de esquerda da região.
Não concordo com essa visão. AP e Mercosul não são blocos excludentes. Há possibilidades concretas de avançar até uma convergência. Em segundo lugar, a política exterior do Chile não é ideológica. Para nós, a AP é um bloco de integração econômica, não ideológica.

Mas parecia ser.
Por isso mesmo nós dissemos de forma clara e categórica: se há alguma intenção de transformar a AP em um bloco político excludente ou supostamente de contraponto ao Mercosul, o Chile não vai compartilhar.
Aspiramos ser um país-ponte e também porto em direção à Ásia e ao Pacífico. É evidente que, para isso, é preciso que os países do Atlântico exportem seus produtos (para a Ásia) através dos portos chilenos. Só estar alinhado à AP não nos serve. A nossa ideia é de convergência na diversidade. Temos um caminho de desenvolvimento diferente, quem sabe, da Argentina ou da Venezuela.

Os países do Mercosul seriam populistas?
De nenhuma maneira. Os empresários chilenos, por exemplo, estão investindo e criando 100 mil postos de trabalho no Brasil. Temos com o país, bilateralmente, uma liberação comercial de 98%. Com a AP, de 92%. É um mito dizer que aqui existe um bloco mais liberal.

O senhor acredita que um dia o continente poderá se juntar em um só bloco?
Quem sabe, em um horizonte mais distante, isso seja factível. Mas hoje é preciso, de maneira pragmática, começar um processo de diálogo gradual e de complementaridade. Vou levar uma série de ideias à próxima reunião de chanceleres do Pacífico, no México. Não queremos colocar um freio na AP, mas sim enxergar o que é factível com o Mercosul, como uma convergência alfandegária, facilitação do turismo, integração cultural. Podemos usar o conceito das distintas velocidades da União Europeia, que permite aos países avançar mais rápido que os outros, caso o queiram.

Seria o que o senhor chama de uma só voz no continente?
Sim, uma só voz no continente, o que é fundamental hoje num mundo que negocia em blocos. Se a América Latina não é capaz de se colocar de acordo, vamos ficar à margem. Hoje em dia, no G20, há três países: Brasil, México e Argentina. Não há coordenação entre eles. Corremos o risco de perder as oportunidades que estão se abrindo em nível global.

Que balanço faz da participação da Unasul no diálogo com a Venezuela?
Quando fomos a Caracas, fizemos gestões muito difíceis. Falamos com o governo primeiro, depois com a oposição, buscando espaços de interlocução entre eles. Conseguimos recompor algo da confiança [entre as partes]. O momento é difícil: a oposição fala que as conversas estão congeladas. O fato é que, desde o início do diálogo, não tem havido mortes.

A Unasul fez questões duras para o governo?
Sim. Nos diálogos com o presidente Maduro, fomos muito francos. Mas não vou falar do que tratamos porque foram diálogos privados. Cabe aos venezuelanos chegar a um acordo. A Unasul não pode fazer o que eles não estejam dispostos a fazer. 

Folha, 29.05.2014

A Europa vai se suicidar?

Crescimento dos partidos xenófobos e eurofóbicos não deve permitir nem complacência nem histeria
É assustador o avanço dos partidos eurofóbicos e xenófobos nas eleições de domingo (25) para o Parlamento Europeu, mas o pior que poderia acontecer seria deixar-se tomar pela histeria.
Um olhar não histérico sobre a votação dirá que, sim, é horrível que a extrema direita tenha passado de 56 eurodeputados, em um total de 736, para 108 em 751, que é a nova composição da Eurocâmara. Praticamente dobrou, portanto.
Mas, ainda assim, não passam de 14% do total. Mais: na metade dos 28 países europeus, não se elegeu nenhum eurofóbico (Espanha, Romênia, República Tcheca, Portugal, Bulgária, Eslováquia, Croácia, Irlanda, Letônia, Eslovênia, Chipre, Estônia, Luxemburgo e Malta).
Ou seja, a xenofobia/eurofobia, irmãs siamesas, não é um fenômeno generalizado. Na lista estão dois dos países mais espancados pela crise (Espanha e Portugal). Em Portugal, perdeu o partido do governo, mas subiu o seu adversário tradicional (o Partido Socialista).
Na Espanha, perderam votos os partidos sempre majoritários (conservador e socialista), mas surgiu um grupo ("Podemos") que representa os "indignados", para nada xenófobo.
Mesmo na Grécia, devastada pela crise e pelo austericídio, perdeu o governo, mas ganhou a Syriza (Coligação de Esquerda Radical), que não é contra a Europa e menos ainda xenófoba, ao contrário, aliás.
Mesmo na França, em que, aí sim, o susto foi espetacular, com a vitória da Frente Nacional, é preciso cautela ao imaginar que se trata do início de crescimento imparável que acabará depositando Marine Le Pen no Palácio do Eliseu.
É bom lembrar que, em 2002, a FN foi para o segundo turno da eleição presidencial, deixando o Partido Socialista para trás, mas acabou triturada no voto final.
O outro partido eurofóbico de sucesso no domingo (o Ukip, Partido pela Independência do Reino Unido) cresceu em número de conselheiros (espécie de vereadores) nas eleições locais, simultâneas com as europeias, mas não elegeu um único presidente de conselho.
O eleitor parece achar que o Parlamento Europeu não interfere diretamente na sua vida e, portanto, pode despejar nele qualquer loucura. Mas, na hora de escolher para seu próprio país, vota nos partidos clássicos.
Feitas todas as ressalvas, não há, no entanto, lugar para a complacência. Como diz Joaquín Almunia, vice-presidente da Comissão Europeia, braço executivo do bloco, "não mudar nada depois dos resultados da eleição seria suicídio".
Afinal, parece ter razão o sociólogo espanhol Jordi Vaquer ao escrever, para "El País", que os eleitores "não estão fartos da Europa, mas DESTA Europa", ou seja, da Europa do austericídio.
Mensagem recolhida pelo grande vencedor de domingo, entre os partidos convencionais, o presidente do Conselho de Ministros italiano, Matteo Renzi: está propondo uma "ope­ra­cão key­ne­sia­na", com es­tí­mu­los e in­vestimentos, além de uma convenção constitucional para relaxar as rígidas regra­s fiscais da eu­ro­zo­na. A ver, pois, se a Europa se suicida ou não. Clovis Rossi. Folha, 29.05.2014.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Conselho de Segurança tem falhas expostas

Por SOMINI SENGUPTA
ONU - Desde o início do ano o Conselho de Segurança já discutiu o conflito na Síria nada menos que 18 vezes e dedicou 13 sessões à crise política na Ucrânia.
E essa ainda é a ação mais concreta tomada pelo Conselho para resolver os conflitos. Ele não propôs soluções diplomáticas. No caso da Síria, a Rússia vetou três resoluções em três anos.
Especialistas dizem que a paralisia em torno da Síria expôs a impotência do Conselho em certos casos e alimenta os chamados por mudanças fundamentais.
Não é só o fato de que o Conselho não tenha conseguido sustar a guerra civil. A ONU não tem sequer garantido a entrega de suprimentos humanitários, como alimentos e remédios, aos sírios que passam necessidade.
"Estamos de volta aos tempos mais sombrios e negros do Conselho de Segurança desde a Guerra Fria", disse Jan Egeland, ex-coordenador de assistência humanitária emergencial da ONU.
Nos último ano, o Conselho já discutiu sobre a Síria 33 vezes, mas a ameaça de veto russo impede a aprovação de uma resolução que possa ser implementada.
Desde 1990, os Estados Unidos vetaram resoluções do Conselho de Segurança em 16 ocasiões e a Rússia, em 11. A França propôs que o poder de veto seja limitado.
As violações dos direitos humanos continuam na Síria, sem qualquer sinal de acordo entre os membros do Conselho quanto à possibilidade de submeter o país ao Tribunal Penal Internacional.
Um pacto para a retirada de armas químicas não abrangeu os fatores que causam mais mortes: armas de fogo, bombas e a fome.
O Conselho de Segurança tampouco fez qualquer coisa para combater uma crise nova: um surto de pólio. Caminhões carregados de trigo, antibióticos e cobertores ainda são barrados nas fronteiras da Síria.
O Reino Unido anunciou que priorizará o financiamento de ONGs que possam entrar na Síria sem que o governo saiba, em vez de financiar grupos da ONU.
O diplomata canadense David M. Malone, autor de três livros sobre o Conselho, disse que a entidade não deixa de ter tido vitórias, como a autorização de uma missão de paz na República Centro-Africana, mas que vem sendo "inútil por enquanto" na Síria.
"Mesmo nestes tempos angustiantes", ele disse, "ela está funcionando mais ativamente que durante a Guerra Fria, embora isso não constitua grande elogio."
A paralisia do Conselho, que tem 15 membros, ficou em destaque quando a chefe de Coordenação Humanitária da ONU, Valerie Amos, disse que as partes em conflito na Síria desrespeitaram a tão difundida resolução do Conselho exortando o acesso a comboios de ajuda humanitária.
Forças do governo continuaram a atirar bombas de barril, provocando baixas indiscriminadas. Medicamentos foram retirados dos comboios de assistência. Uma resolução que pedia que a ajuda fosse entregue em segurança fracassou, disse Amos.
No final de fevereiro, diplomatas ocidentais avisaram que tomariam "ações adicionais" se a medida exigindo a entrega de ajuda humanitária fosse desrespeitada. Nenhuma providência foi adotada até agora.
O embaixador brasileiro Antonio Patriota disse que os cinco membros permanentes do Conselho são incapazes de passar por cima de suas posições entrincheiradas para se comunicar. "O ambiente no interior do P5 é de desconfiança e diferenças ou divergências entrincheiradas".
O que mais perturba as agências humanitárias é o contraste entre o rigor com o acordo sobre armas químicas e o desrespeito flagrante à medida relativa ao acesso humanitário.
"A diplomacia teve êxito extraordinário em acabar com 1% do problema, que eram as armas químicas", comentou Egeland.
Diplomatas dizem que as dificuldades do Conselho em relação à Síria macularam sua reputação.
Para Christian Wenewaser, o embaixador de Liechtenstein, "há um nível de frustração que não se via havia algum tempo. As pessoas estão questionando o que o Conselho está fazendo." NYT, 20.05.14

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Mercosul: Retórica e realidade

Os interesses comerciais brasileiros devem vir antes de afinidades ideológicas e jamais a reboque de parceiros, como ocorre hoje
Em artigo recente ("Ideia de acabar com o Mercosul é pouco factível e empobrece debate necessário", "Mundo", 23/4), a professora titular de universidade argentina Monica Hirst criticou "um candidato presidencial brasileiro" por ter sugerido "terminar com o Mercosul".
O pré-candidato presidencial em questão, o senador Aécio Neves (PSDB-MG), em nenhum momento propôs o fim do Mercosul.
O que tem sido corretamente notado por ele, em diferentes oportunidades, é que o Mercosul, como mecanismo de abertura de mercado e liberalização de comércio, está paralisado e tornou-se irrelevante do ponto de vista comercial.
O Mercosul representa hoje apenas 8,6% do intercâmbio total do Brasil, depois de ter representado quase 16% do comércio exterior total. O protecionismo ilegal e defensivo prevalecente gera uma atitude introvertida contrária aos interesses do Brasil.
O resultado foi um crescente isolamento do Brasil e do Mercosul das novas formas de comércio --cadeias produtivas globais, que representam hoje 56% do comércio global-- e das negociações de acordos de livre comércio bilaterais e de mega-acordos regionais. O Brasil e o Mercosul concluíram negociação com apenas três países: Israel, Egito e Autoridade Palestina.
O que Aécio Neves tem dito é que a política em relação ao Mercosul deve ser revista e que as regras do bloco deveriam ser flexibilizadas.
Nesse sentido, deveria ser revogada a decisão de negociar acordos com terceiros países com uma única voz, o que impede o avanço das negociações comerciais.
Um acordo abrangente e equilibrado de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul, que vem sendo negociado há mais de uma década e tem na resistência argentina um de seus principais entraves, tem merecido todo o apoio da oposição.
Ao defender que o Mercosul pratique o livre-comércio, Aécio Neves não quer o fim da tarifa externa comum. Apesar de imperfeita, a união aduaneira (atual estágio do Mercosul) garante preferências tarifárias para os produtos industriais brasileiros, que sem ela teriam de submeter-se à concorrência aberta com fornecedores de todo o mundo, em especial da Ásia, no momento em que há uma crescente perda de competitividade da indústria, em decorrência do alto custo Brasil.
A crítica que se faz ao Mercosul é sua transformação, por inspiração partidária, de um tratado econômico-comercial em um fórum que ignora totalmente o objetivo inicial dos países membros.
Nada contra a discussão sobre temas sociais e políticos, que aliás já existia antes de 2003, ano em que tudo começou no Brasil...
Os interesses comerciais brasileiros devem vir antes de simplórias afinidades ideológicas e jamais a reboque dos demais parceiros, como ocorre hoje. O Brasil está atrelado ao atraso representado pela Venezuela, Bolívia e Argentina.
O debate sobre o Mercosul é urgente. Não uma discussão pobre, ideológica, mas objetiva e direta, colocando o interesse nacional acima de qualquer outra consideração.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

MATIAS SPEKTOR: Retaguarda exposta


No Brasil, as autoridades enfrentam dificuldades cotidianas para negociar com o governo argentino
"Quero ajudar Cristina como for possível", disse Dilma a um de seus embaixadores em 2011, logo após assumir o governo. A Argentina era o principal aliado regional do Brasil, e Cristina representava uma alternativa de esquerda inspirada pelo lulismo. Ciente das dificuldades da colega, Dilma estava disposta a entrar em campo.
Na perspectiva do Planalto, o kirchnerismo merecia apoio depois de tanta façanha. Chegando à Casa Rosada em seguida a uma das maiores crises da história argentina, o casal Kirchner fizera a economia crescer e renegociara os termos da dívida externa. Introduzira políticas redistributivas pela primeira vez. E, no processo, montara uma poderosa estrutura de poder.
O relacionamento de Lula com o kirchnerismo nunca fora fácil. Néstor criara problemas, atuando contra a iniciativa brasileira pela reforma do Conselho de Segurança da ONU e pela criação da Unasul.
Dilma conseguiu melhorar o tom da relação, embora fosse impossível reverter a bateria de atritos comerciais, que apenas pioraram.
Em 2011, o kirchnerismo ganhou força adicional, reelegendo Cristina com 54% dos votos. Alguns sonharam com uma reforma constitucional que permitisse a ela pleitear um terceiro mandato.
De lá para cá, no entanto, o cenário mudou.
Derrotada nas eleições parlamentares de 2013, Cristina ficou sem maioria para reformar a Constituição e tentar mais uma reeleição.
O Banco Central perdeu um quarto de suas reservas, a política de nacionalização de empresas espantou investidores estrangeiros e o preço da soja, motor do kirchnerismo, parou de crescer. Semana passada, sindicalistas antes alinhados com o governo patrocinaram uma greve geral que parou o país.
Nesse ambiente, a tensão social cresce. A opinião pública é cada vez mais inclemente com a sensação de insegurança, os apagões e os escândalos de corrupção.
Para alguns, Cristina poderia até mesmo deixar o governo antes das eleições para tentar a sorte como governadora ou senadora e, assim, contar com foro especial para se defender dos processos na Justiça, que virão.
Cristina também está perdendo amigos pelo mundo. Sua agenda com Chile, Uruguai e Paraguai é negativa, e com a Venezuela, de dependência.
No Brasil, as autoridades econômicas e comerciais enfrentam dificuldades cotidianas para fazer negócio com o governo argentino, e a relação entre as presidentes está longe de ser íntima.
Grupos dentro do PSDB advogam abertamente por uma flexibilização do Mercosul, arrancando o aplauso de partes da indústria e até mesmo de gente vinculada ao PT. Nesse cenário, a Argentina perde.
Cristina ainda tem um ano e meio pela frente, e muita coisa pode mudar. Do ponto de vista brasileiro, porém, o cronograma não podia ser pior.
Enquanto os argentinos estiverem atravessando sua transição política mais importante em mais de uma década, com tudo o que isso traz de incerteza, o próximo governo brasileiro, seja de quem for, estará lidando com seu próprio ajuste. Folha, 16.04.2014.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

JULIA SWEIG: Obama e o 'Twitter cubano' (Zunzuneo)

Uma ironia está no fato de o esquema quase disfarçado do Zunzuneo visar clima de transparência em Cuba
"Incendiário". "Tragicomédia." "Burrice". Essas são algumas das reações à notícia de que, entre 2009 e 2012, a Usaid [agência americana de cooperação] financiou firmas de fachada na Costa Rica e na Espanha para promoverem um aplicativo gratuito de mídia social a usuários de celular cubanos.
Em seu auge, até 68 mil cubanos usavam o "Zunzuneo", semelhante ao Twitter. Isso conferia potencialmente aos EUA (era isso, pelo menos, o que esperavam os criadores do aplicativo) uma plataforma para induzir "flash mobs" antigoverno, identificar potenciais líderes oposicionistas e ampliar os setores dissidentes. A ação de Washington em tudo isso era oculta.
Um histórico breve: sob George W. Bush e com milhões de dólares e muito apoio político do Congresso, a Usaid, o Departamento de Estado e outras agências governamentais desenvolveram uma nova interação das velhas políticas de desestabilização: penetrar o bloqueio de informação do regime, promovendo acesso a novas tecnologias para a população cubana. Bush e seu pessoal não faziam esforço para ocultar suas intenções: falavam francamente sobre mudança de regime.
O governo Obama levou esses programas adiante e os desenvolveu mais, mas com o discurso mais liberal de "promover a democracia" ou "fortalecer a sociedade civil". (Esses conceitos deveriam estar acima de críticas, mas, quando viram eufemismos para mudança de regime, perdem seu teor idealista.)
A então secretária de Estado Hilary Clinton fez da ampliação da "liberdade da internet" uma das bases para promover a democracia em regimes autoritários, especialmente no contexto da Primavera Árabe.
Presume-se que os gênios digitais que tinham chegado à Casa Branca e ao Departamento de Estado, em muitos casos após ter êxito na área de mídia social da campanha presidencial de 2008 de Obama, tenham injetado uma certa dose de inovação e esperança nos guardiões burocráticos dos 50 anos de fracasso de Washington ante Cuba.
Há muitas ironias presentes. Esquemas quase disfarçados como o Zunzuneo supostamente visam promover um clima de transparência e liberdade de expressão nos países alvos. Outra ironia: o objetivo das sanções econômicas contra Cuba, que Obama fortaleceu no setor financeiro e bancário internacional, é privar o regime de receita. Mas o sucesso do Zunzuneo dependia dos serviços de telefonia celular prestados pela companhia telefônica cubana, uma estatal.
Para manter esse canal, uma das firmas de fachada criadas pela Usaid encontrou um jeito de fazer pagamentos em divisas --sim, a receita que as sanções supostamente devem impedir de chegar-- por meio de um banco de um país terceiro, diretamente para os cofres cubanos.
Audiências no Congresso vão pedir a funcionários do governo que expliquem algumas destas ""hã--contradições. Minhas perguntas: quem comanda a política de Obama para Cuba? Como esses programas podem superar algo que Obama, o vice-presidente Biden e o secretário Kerry já admitiram ser um fracasso que dura 50 anos?
Folha, 09.08.2014
www.abraao.com


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