quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Legado de Eduardo

MATIAS SPEKTOR

Em entrevista, denunciou a "diplomacia paralela" do PT e criticou a leniência com países vizinhos

Política externa nunca foi central no projeto pessoal de Eduardo Campos. Em sua trajetória --da política universitária à presidência do partido--, a conjuntura global não foi concebida como alavanca de poder nem como âncora de sua visão de país.
Não surpreende, portanto, que seus comentários sobre o tema encontrassem amparo no repertório diplomático do governo Lula, nem que, como candidato, ele evitasse bolas divididas sobre o assunto, que não lhe rendia votos nem magnetizava a sua militância.
Em maio passado, a conjuntura forçou uma mudança de atitude. Seus marqueteiros cobraram diferenças mais claras em relação a Dilma e a Aécio, criando identidade própria capaz de dar substância à promessa de superação da dobradinha PT-PSDB.
Inventar uma plataforma de política externa inovadora seria tarefa árdua. Não apenas há uma notável escassez de ideias a esse respeito no mercado intelectual, como o PSB, partido de Campos, tem tradição no assunto.
Sua voz mais eloquente é a de Roberto Amaral, nosso político profissional na ativa que mais escreve sobre relações internacionais.
Acomodar a cosmogonia de Amaral no projeto de Eduardo para 2014 estava fadado a ser um processo turbulento. Com seu estilo combativo, Amaral vislumbra uma política externa que bebe na Política Externa Independente dos anos 1960 e na visão de mundo do general Ernesto Geisel dos anos 1970.
Além do problema das ideias, havia o problema do poder. Amaral fez da política externa um baluarte do vínculo do partido com Lula e de sua própria autoridade sobre os correligionários.
Em sua posição, denunciou tudo aquilo que via como furor de Eduardo: a aliança com Marina, a convergência de ideias com Aécio e uma certa intolerância com as lideranças tradicionais da agremiação.
Dias antes de morrer, Eduardo tentou resolver o problema, cortando-o pela raiz.
A oportunidade apareceu quando a revista "Política Externa" comprometeu-se a publicar uma entrevista sem cortes nem edições a respeito da diplomacia de seu eventual governo.
As respostas de Eduardo golpeiam as teses mais tradicionais do partido. É Beto Albuquerque, não Roberto Amaral.
Rejeita-se a crença petista no declínio americano e defende-se o oposto: os Estados Unidos estariam vivendo uma vigorosa recuperação que os manterá na liderança econômica e tecnológica do planeta.
Na entrevista, Eduardo denuncia a "diplomacia paralela" do PT e critica a leniência com Argentina, Bolívia, Equador e, acima de tudo, Venezuela.
Ele oferece um caminho para flexibilizar o Mercosul, alerta para o risco embutido nos Brics e se diz compromissado com regimes globais de cunho liberal, seja em comércio ou direitos humanos.
O texto reconhece alguns trunfos de Lula estadista, mas mantém distância.
Se essa agenda terá futuro com Marina, ninguém sabe. Se bastará para disciplinar a nova constelação de forças no partido, também não. Folha, 20.08.2014.

É HORA DE DESTRAVAR A POLÍTICA EXTERNA

A economia brasileira é, hoje, uma das mais fechadas do mundo, com o comércio representando cerca de 20% do Produto Interno Bruto
Afora os Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e as relações com Pequim, a política externa brasileira travou, inclusive em setores prioritários --como Mercosul, América do Sul e comércio exterior.
O Mercosul está paralisado, se não em retrocesso. Em pouco mais de uma década, as vendas brasileiras para o grupo declinaram de 17% a 8% das nossas exportações. Os investimentos também caíram, enquanto as instituições do Mercosul não fizeram qualquer progresso significativo.
Chegou a hora da verdade para o Mercosul. Os países-membros do grupo terão de tomar decisões fundamentais: querem consolidar o livre-comércio? Pretendem manter a união aduaneira? Querem continuar a proteger bens intermediários, em detrimento da integração das cadeias produtivas?
Quaisquer que sejam as opções, o importante será cumprir as regras acordadas, de modo a restaurar a credibilidade que o Mercosul perdeu. Com a adesão da Venezuela ao grupo, inclusive a cláusula democrática virou letra morta.
Na América do Sul, em vez de caminharmos para a integração, marchamos a passos firmes para a desintegração, com o traçado de uma nova linha de Tordesilhas que separa o Mercosul, a leste, da Aliança do Pacífico, a oeste. O último grupo representa 34% do PIB e 51% do comércio da América Latina.
Em três anos, a Aliança do Pacífico avançou, em vários setores, mais do que o Mercosul. A busca de uma convergência entre os dois grupos encontra, no entanto, a resistência do Brasil.
Por fim, em comércio colocamos todas as fichas na OMC (Organização Mundial do Comércio). Com o fracasso, provavelmente definitivo, da Rodada Doha, ficamos a ver navios, pois não negociamos os acordos de comércio, bilaterais e regionais, que a maioria de nossos parceiros já concluiu.
O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, o mais importante deles, ainda não foi finalizado --pela resistência da Argentina em aceitar concessões que os seus parceiros no Mercosul já fizeram, e pela recusa do Brasil em prosseguir nas negociações sem a Argentina, como, de fato, pode e deveria.
O custo para o Brasil será alto. Como relembrou José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, o Brasil poderá perder, entre outras vantagens, o acesso privilegiado ao mercado europeu de carne, caso as negociações com Washington avancem rapidamente, pois serão concedidas aos Estados Unidos as quotas que poderiam beneficiar o Brasil.
A abertura da economia é precondição para a retomada do crescimento. Assim como as reformas econômicas são um requisito para que a indústria possa competir.
A economia brasileira é, hoje, uma das mais fechadas do mundo. O comércio representa cerca de 20% do PIB --no caso da China, este percentual é de 53%. O presidente chinês, Xi Jinping, em sua visita recente ao Brasil, declarou que seu país não seria o que é hoje não fossem a abertura do comércio e as reformas da economia -- e Xi Jinping é insuspeito de inclinações neoliberais.
O travamento da política externa não ocorre apenas em setores prioritários. O comércio com a África continua a representar 5% de nossas exportações, como há várias décadas. As relações com Washington estão num ponto morto, exatamente no momento em que os Estados Unidos promovem uma revolução energética como prelúdio para um processo de reindustrialização, que abrirá oportunidades novas para cooperação e comércio.
É preciso não confundir visitas diplomáticas e comunicados conjuntos generosos com programas e parcerias efetivas. Infelizmente, temos sido pródigos na retórica e modestos nos resultados.